Resumo: Para tornar inteligível uma expressão ou uma forma dialetal do sistema de certa língua, da qual hipoteticamente ela provém, existe um movimento de aproximação e de simultâneo distanciamento da norma. Esta, muitas vezes, termina por incorporar a nova forma expressiva. A literatura gauchesca e sua heterodoxa herança percorreram esse sinuoso caminho no Rio da Prata, primeiro, e no sul do Brasil, mais tarde, preservando o grande panorama do espanhol e do português muito mais do que em qualquer outra parte da América Latina. Juan José Morosoli (Minas, Uruguai, 1899-1957) se defrontou com o dilema de escrever uma literatura narrativa que fugisse dos esclerosados reflexos da tradição da gauchesca sem escapar à representação da fala e dos dialetismos próprios da sua região, consciente de que muitos pertenciam a esse acervo literário. Esse processo constitui uma primeira forma de tradução. Já no âmbito do português da fronteira sul, Sérgio Faraco (Alegrete, RS, 1940), ao versar alguns contos de Morosoli, deparou-se com o mesmo problema em outro contexto de língua, em contato com o espanhol do sul. Em um e outro caso, o conflito entre dialeto e norma pode tornar-se uma luta cultural e estética.
Palavras-chave: Dialeto; Norma; Narrativa Sur-Sul.
“A poesia é uma abstração; e o conto, uma experiência referida, e não outra coisa. Uma experiência do conhecimento do homem, com meio ambiente – ou seja, clima psicológico, clima moral e social”. O princípio, emitido em 1945, pertence a Juan José Morosoli (Minas 1899-1957), que, naquela época, já tinha uma obra reconhecida no gênero. Como sua literatura se apoia em seres deste mundo, em sua opinião, o narrador vem a ser um intérprete e interlocutor válido dos “processos mentais” daqueles que apenas podem mostrar “por si mesmos as dimensões de seu espírito” (Morosoli, “Cómo escribo mis cuentos”, 1971: 100). Visto dessa maneira, o escritor seria quase um médium daqueles que somente têm voz para a comunicação cotidiana, a quem pede emprestadas suas palavras para transcendê-las, para fazê-las literatura, de quem tira – para salvá-los, reinventando-os – gestos e silhuetas que se perpetuam em sua linguagem, salpicada pela deles.
No século XIX e um pouco depois, o romance, gênero privilegiado, foi “o sistema da língua” (Bakhtin, 1989:80), o grande armazém das palavras que representavam todos os tipos de coisas. O conto, por sua vez, em sua brevidade, aparecia como um recorte mais ajustado, menos "social", reduzido a um episódio, relutante à descrição demorada. Portanto, cada termo devia ser medido com cuidado, muito mais quando se desviasse da norma linguística padrão de uma língua ou quando acudisse a formas dialetais, já que tinha que contribuir com algo especialmente significativo dessa “experiência referida”. Ou silenciar.
1Notas
Conforme solicitação do autor, para a presente edição de Pontis, a tradução aqui veiculada foi realizada a partir do texto original tal como publicado em Conexões Letras, vol. 12, n.° 17 (2017): 65-79, disponível em <http://seer.ufrgs.br/index.
Até 1930, o conto era um gênero em formação. Na língua espanhola, ele ainda não havia conquistado o prestígio que obteria com as histórias já escritas por Horacio Quiroga e, em breve, por Borges, mas acumulava obras significativas. Basta pensar no superlativo elogio de Poe, Maupassant, Kipling e Tchekhov que Quiroga faz no primeiro ponto de seu "Decálogo del perfecto cuentista", originalmente publicado em julho de 1927, quando pede para acreditar “como no próprio Deus”. Esta sentença hiperbólica fala do duplo estado de existência total do gênero e da convalescença de sua recepção (Rocca, 2006). Em sua linha, alguns narradores hispano-americanos começaram a especular sobre esta forma; entre eles, Morosoli foi um dos mais constantes.2
Contra as aparências, a propriedade básica do conto é a de referir uma experiência que equilibra a equação palavra e mundo. Estamos, portanto, diante do nó da questão, não somente na narrativa de Morosoli, mas em grande parte da literatura e da arte de seu tempo (dentro ou fora da América), porque, em 1930, as vanguardas haviam atacado severamente o problema de representação como tal. O ônus da prova poderia ser posto na maneira de referir – isto é, na linguagem e seus artifícios – mais do que na pura enumeração da “experiência”, esquivando o confinamento da coleção de histórias curtas, de alcance puramente anedótico ou circunstancial.
Qualquer um que tenha lido algumas histórias do Morosoli, mesmo que a priori ignore o meio representado, adverte que nessas narrativas são recuperadas as experiências de seres e situações de sua pequena cidade serrana, Minas, e seus arredores cobertos com campos pedregosos, em chácaras mais do que em estâncias ou na solidão da serra. Alguns personagens (como o calagualero, o arenero ou o monteador3) ou algumas pinceladas da paisagem agreste – mas
nunca sua descrição minuciosa ou abrumadora – são índices contextuais inconfundíveis dessas histórias.
Em alguns casos (como no relato Los albañiles de “Los Tapes”, 1936), o ambiente tem um maior grau de protagonismo, embora menos força do que possa ter a atmosfera missionária nos contos de Los desterrados: Tipos de ambiente (1926), de Quiroga. Muitíssimo menos valor em si tem o meio do que lhe atribuiu Javier de Viana (1868-1926) em seus contos atravessados pela ideia de ligar o sujeito à sua indumentária e à paisagem de um campo que se sucede sem fim aparente. Morosoli se separa do princípio determinista que liga personagem e ambiente, associação imposta pelo realismo – ou melhor, pelo positivismo filosófico – que, só então mansamente, começa a declinar em sua versão naturalista. A transição é ostensível se são comparados os títulos de suas poucas coleções de contos com os muitos de Javier de Viana, o mais prolífico, influente e talvez o maior contista criollo rioplatense. Entre 1896 e 1919, Viana intitula seus livros Campo, Abrojos, Yuyos, Leña seca, Cardos, Macachines ou utiliza em outros paratextos substantivos que são rio-platenismos (Gurí, Gaucha). Em troca, salvo em uma ocasião (no volume Los albañiles de “Los Tapes”), Morosoli escolhe categorias fora do tempo e de um lugar concreto para seus títulos: Hombres, Hombres y mujeres, Vivientes, Tierra y tiempo. Não em vão, avalia, em vários de seus artigos e conferências, a obra de Viana, tentando localizá-lo, respeitosamente, como o retratista de um tempo passado, o tempo gaucho, em contraste com seu projeto que concerne o camponês – com ou sem patrão – da serra.
O conto que era escrito em diferentes recantos da América Latina gozava de um auditório de relativo alcance nas publicações periódicas de circulação massiva. Para algumas delas (“Revista Multicolor de los Sábados” do jornal Crítica, Buenos
Aires; “Suplemento Dominical” do El Día, Montevidéu), Morosoli destinou a maior parte de suas ficções e até de seus artigos. Enquanto as grandes figuras do século XIX seguiam gozando de desigual reputação (Flaubert, Zola, Dostoievski), e os textos de “vanguarda” começavam a ser degustados por algo mais do que os pequenos círculos (Joyce, William Faulkner, Virginia Woolf), na literatura latino-americana se agitava o grande fantasma do pitoresco. A cor local aparecia como trauma ou como mal de origem para a literatura americana, marca subsidiária da matriz europeia da qual tentava se diferenciar, mas, por diferentes meios, recaía na poderosa atração das propostas técnicas imaginadas em outros espaços para outros cenários. Vários tormentos agitaram os ânimos de autores e críticos: como transformar-se em um escritor fora da estima dos mais imediatos congêneres; como conquistar um amplo leque de leitores dentro e fora da língua espanhola; como evitar as exigências do gosto dos mercados centrais que atribuíam à literatura americana um roteiro fixo – se algo atribuíam –, o de escrever sobre o local com uma forte dose de exotismo.
Um par de exemplos talvez esclareçam estes dilemas. O romance sobre a revolução mexicana, que Mariano Azuela inaugurou no apogeu desta larga e tortuosa luta, é apropriado pela indústria do cinema norte-americano em versões empachadas de tiros, coros de gritos agudos, imagens de camponeses indolentes jogados ao sol com a proteção duvidosa de um grande chapéu de enormes abas perto de tunas demasiadamente espinhosas. Idêntico destino típico e até mais pasteurizado teve Doña Bárbara, de Rómulo Gallegos, romance de boa circulação americana, já que não é raro, ainda hoje, deparar-se em sebos de Montevidéu com sua primeira edição de Barcelona (Araluce, 1929) ou, mais facilmente, com suas múltiplas reimpressões pela mesma editora. Esta ficção desafiou os cânones do regionalismo e trilhou seu caminho de prestígio entre os escritores
americanos; pôde atrair certo público, mas, graças à versão hollywoodiana de 1943, passou a ser um ícone do remotismo semitropical. A atuação protagônica de María Félix e Julián Soler consagrou um olhar em que vida e natureza se fundem em um destino, solitário e um tanto cafona. O processo seguiu sua queda nas versões contemporâneas do texto para telenovelas de enorme difusão hispano-americana. Visto deste modo, o conto foi uma reação contra a visão totalizadora do romance realista, mas também contra a indústria do cinema hollywoodiano que, até então, somente havia menosprezado (ou espartilhado) a imaginação americana.
Somente em um sonho Morosoli poderia imaginar que algum de seus textos seria levado ao cinema – o que feliz e eficazmente ocorreu quase meio século depois de sua morte3–; como pesadelo, deve ter receado que suas histórias tivessem um destino semelhante ao de Doña Bárbara. Sabia bem que, para escapar do catálogo de costumes, seria necessário refletir sobre a escrita, seria necessário ler e pensar a literatura de seu tempo e aquela que o precedia, do que seus textos críticos e suas notas dão fértil prova. Por isso, era natural que rondasse habitualmente certa obsessão por delimitar o microuniverso narrativo que representava, algo que pôde ser entendido como vocação por fixar na escrita a vida campesina. Em 1953, na conferência “O romance nacional e alguns de seus problemas atuais”, Morosoli recorre ao plural de modéstia para avaliar seu trabalho no panorama da narrativa uruguaia: “Quando nós chegamos, terminava o ciclo que continha tudo o que o romance da época considerava imprescindível para escrever um bom romance nacional. Chegamos quando transitava do gaucho ao camponês” (Morosoli, “La novela nacional…”, 1971: 68). Essa passagem, que caracteriza com agudo acerto, o vincula às possibilidades do realismo do qual não se distancia,
embora o questione em suas modalidades mais cruas. Por sua vez, a diferença entre gaucho e paisano, que, em princípio, estabelece mais como de tipo social e cultural (“Quando o gaucho desceu do cavalo, deixou de ser romanceável. Nós o encontramos a pé”, art. cit.: 67), em rigor, coloca em discussão o grande problema da tradição literária, que corresponde ao primeiro, e o esforço de novação verbal que devia ser empreendida com o segundo para atribuir sentido a sua figura e a suas linguagens.
O grande desafio que, com o passar do tempo se torna programa estético, se situava em como fazer falar os sujeitos populares da área rural ou suburbana escolhidos para suas histórias, esses seres de papel que partiam daqueles que podia conhecer muito bem. Transpostos à escrita, se tornavam um problema somado ao dilema entre o pitoresco e o universal: o que fazer com o dialetal e como baralhar a tradição poderosa da literatura gauchesca que havia cristalizado esse dialeto como literatura ameaçando a norma – de Hidalgo a Ascasubi, passando por Lussich e Hernández – e, sobretudo, utilizando e realizando “no grau mais alto as possibilidades do sistema”, segundo sempre é feito pela grande literatura (Coseriu, 1962: 99).
A poderosa invenção da gauchesca havia se tornado atividade rotineira até 1920. Por outro lado, se fazia sentir a coação do casticismo daqueles que promoviam a inflexibilidade da norma castelhana como reação – poucas palavras mais justas para o caso – contra a avalanche da literatura regional. Em 1926, o Seminário de Cultura e Línguas Românicas da Universidade de Hamburgo publicou Das ausländische Sprachgut im Spanichen der Río de la Plata. Ein Beitrag zum Problem der argentinichen Nationalsprache, de Rudolf Grossman. Tendo em vista que foi escrita
em alemão e editada em formato de tese universitária, esta pesquisa garantiu para si um prolongado esquecimento. Foi necessário esperar até 2008 para que a tradução de Juan Ennis nos revelasse este volumoso livro com o título El patrimonio lingüístico extranjero en el español del Río de la Plata. Por essa tradução, sabemos da aventura de vida e da pesquisa de Grossman em fontes argentinas e uruguaias (sobretudo as segundas); sabemos de sua posterior radicação no país de seus pais, onde reuniu suas centenas de anotações e as transformou em uma germânica tese sobre um território, uma língua e suas variantes em diálogo com um amplo repertório de fontes literárias que conhecia de primeira mão.
Detenhamo-nos, apenas, em duas anotações desta obra que servem como diagnóstico do momento abordado por Grossman: o tempo da formação e os primeiros passos literários de Juan José Morosoli. A primeira se refere à língua hegemônica nos meios que monopolizam a escrita:
[…]a influência do espanhol castiço tornou-se, no presente, de novo dominante. Os jornais mais importantes de Buenos Aires: La Prensa, La Nación, La Razón, também grandes jornais provinciais como La Capital em Rosário, escrevem em um estilo exemplarmente puro. Alguns, como La Prensa, inclusive dedicaram uma coluna linguística com fins puristas, e como a imprensa argentina […] exerce uma influência pedagógica onipotente no espaço público, muito maior que a do livro, seu espanhol é, para uma porcentagem muito alta dos leitores, o único padrão modelar (Grossman, 2008: 112-113).
A segunda afirmação se refere à relação entre o espanhol e outras línguas no
momento decisivo em que, como nunca antes, prosperam as traduções na Argentina que podem se materializar em livros e, em uma ou outra modalidade, se expandir aos países vizinhos:
[…] quando […] o jornal recebe os manuscritos originais em outra língua, se procura uma tradução absolutamente modelar. Nas redações dos mencionados jornais, toda uma série de renomados literatos espanhóis e locais […] se preocupam por manter a mencionada parte do jornal em uma altura linguística digna de inveja (Grossman, 2008: 113-114).
Caso esta avaliação do pesquisador teuto-argentino fosse certa, fazer jornalismo e literatura na Argentina, em 1926, alterando a norma hispânica, continuava sendo uma empresa temerária. Contudo, como em nenhuma outra zona americana, na Argentina se contava com a tradição ferozmente crítica de uma língua nacional submetida aos cânones castelhanos que, cedo, havia tido em Sarmiento seu mais brilhante expositor e o mais forte apologista da tradução como método para modernizar o espírito e as letras americanas5. Como toda reação produz seu contrário, o hispanismo e o pensamiento conservador foi (e é) na Argentina muito mais forte do que pôde ser ou é do outro lado do Prata. Caso o diagnóstico de Grossman fosse correto, o império castiço teria recaído sobre o jornalismo e a academia. Esse domínio explicaria melhor a violenta reação dos jovens martinfierristas argentinos de 1927 contra a proposta de Guillermo de Torre por fixar em Madri o “meridiano intelectual da América Hispânica” (Alemany, 1998). Esse seria, pois, o clima e as condições de produção de uma literatura em cujo seio continuava a luta entre sistema, norma e fala, entre tradições e renovações culturais e linguagens. Nenhum ambiente melhor que a discussão sem
concessões para abastecer uma grande literatura.
Uma coisa era enfrentar-se a essa posição dominante a partir dos jornais mais ou menos de esquerda e mais ou menos de avant-garde (Proa, Martín Fierro, Claridad) algo que, cada qual a sua maneira, faziam Borges e Arlt, entre outros escritores menos prospectivamente ilustres – ou a partir de edições semiclandestinas, tanto porque eram escassas como de pouco retorno financeiro e duvidosa circulação –; outra coisa muito diferente era combater essa política hispanófila nos próprios meios de imprensa que defendiam oficialmente essa postura.
Seria necessário avaliar se, na margem oriental do Prata, a imprensa tinha essa mesma política linguística, aspecto que desborda as possibilidades deste artigo, mas uma revisão do mencionado caderno do El Día, em que Morosoli deu a conhecer muitos de seus relatos e artigos desde meados dos trinta até o final de sua vida, nos faz suspeitar que, pelo menos neste muito difundido caderno, a defesa da “pureza do idioma” não era a regra áurea.
Se concordamos com que uma língua é um sistema composto por “línguas individuais, todas diferentes entre si”, um conjunto heterogêneo chamado idioletos, então – como polemicamente expôs José Pedro Rona –, não existiu uma só linguagem falada “típica do gaucho”, mas, na verdade, “a linguagem gaucha como complexo de idioletos individuais sumamente diversificados entre si” (Rona, 2014: 28, 342). A gauchesca, nascida por volta de 1815, havia se tornado prática literária contínua na qual cada autor acrescentou seu idioleto utilizando uma reserva dialetal que, graças ao retorno da leitura e, sobretudo, da recitação em voz alta perante vários ouvintes, contribuiu para legitimar e até codificar. Este sistema gozava já de mais de um século de persistência quando Morosoli publicou seu primeiro livro de contos, Hombres (1932). Para um inexperiente escritor do
interior, era difícil esquivar o peso dessa tradição ou, melhor, da prática dessa língua literária sobre o gaucho que se justapunha às vozes que Morosoli podia escutar ou conhecer por alguns segmentos do idioleto de Minas e arredores.
Várias vezes advertira-se sobre as marcas de oralidade e as soluções de escrita gauchesca em Morosoli sem que estas tenham sido estudadas com o cuidado que merecem. O primeiro a assinalá-las foi Heber Raviolo, o grande editor e crítico de Morosoli, a quem devemos sua cabal recuperação desde 1962, quando publicou um pequeno volume com obras inéditas em livro (El viaje hacia el mar. Montevidéu, Banda Oriental), primeiro passo de um longo trajeto editorial. Em uma introdução a Hombres, talvez ele próprio contagiado pelos temores ou preconceitos do narrador, Raviolo indicou que a proliferação coloquial produziu uma “espécie de desbordamento de giros e expressões populares que, ultrapassando os diálogos, se instalam em todo o relato” (Raviolo in Morosoli, Cuentos completos, 2009: 111). Isso não é mais do que a presença de um narrador homodiegético, que não freia com sua voz o grande repertório de coloquialismos. A abundância desses “giros e expressões” fez Raviolo pensar que Morosoli havia cometido erros de transcrição de formas dialetais, falhas que atribuiu à sua imperícia na transposição para a escrita da reprodução fonética e gráfica ou à imperícia dos editores rústicos de Morosoli no primeiro momento. Poderia pensar-se que Morosoli passou por uma transformação da própria ideia de literatura e das formas de representação da oralidade.
Nos primeiros livros, tanto en Hombres como em Los albañiles de “Los Tapes”, Morosoli ensaia, hesita, e, com bastante ortodoxia, acaba curvando-se ao regime da gauchesca, do que, mais tarde, por volta do final da década de quarenta, consegue libertar-se com um discurso mais austero que acompanha a economia
verbal de seus personagens. Mas até 1935 (já que Los albañiles…, conforme o colofão do livro, saiu da gráfica no dia 7 de janeiro de 36) na tradição da gauchesca e, sobretudo, na linha do conto criollo à Viana, esse discurso desempenha o duplo papel simultâneo de introduzir a tipicidade e, logo, sair dela. Como era habitual, o narrador situa entre aspas as palavras que se distanciam da norma para separar sua linguagem daquela dos personagens, mas a simples menção desse repertório o faz ficar com parte do mesmo. Dois exemplos ilustrarão melhor estes movimentos. No conto “Los tres compañeros”, escrito em 1935, aparecem o seguinte diálogo e o comentário ulterior do narrador:
–Serán iguale todo los pagos… Pero pal que va por dir, están bien…
–Pero hermano, vos ve que nu hemos pasao ningún trabajo… ¿Si no pasamu algo q’vamo a contar?...
–Todo caso noj hacemo contrabandista…
–Taría legal…
Pasaron tres o cuatro noches durmiendo a “lo pampa”. Desdeñaban quedarse en “las casas”, adonde iban por carne (Morosoli, “Los tres compañeros”, 1936: 93).
Comparado este diálogo com o de outros dois seres imaginados, que quase não têm diferença de classe social nem de registro cultural, mas que pertencem à etapa final de sua obra, as diferenças são muito marcadas na representação da suposta oralidade popular6. Trata-se de dois personagens de “Un soldado”,
Tertuliano e Toledo, conto publicado originalmente en El Día de 6 de setembro de 1953 e reunido no livro póstumo Tierra y tiempo:
–¡Dejesé! ¿Reventar trabajando entre abrojos y chanchos! ¡Ver acostarse las estrellas arando de tanto talón rajao!... ¡Si sabré lo que es eso!
–¡Parece mentira Tertuliano –contestó Toledo amablemente– que usted diga eso. Trabajo, es cierto. Se trabaja… ¿Pero qué me dice del invierno? Terminó de plantar el trigo y el trigo viene… Carneó dos chanchos… Empieza a llover y el rancho queda aislado… Usted se come un guiso de porotos lleno de cosas de cerdo… Toma buen vino, después mate de café y al fin se acuesta a dormir… Y de noche otra vez… ¡Y que siga el tiempo nomás! […] ¡Déjese de embromar! (Morosoli, Cuentos completos, 2009: 424).
Tertuliano representaria um pouco o personagem da gauchesca, e Toledo, o camponês afincado. Ainda sim, diferentemente do costumeiro em sua primeira época, em 1953 a escrita de Morosoli, salvo alguma marca diferencial, se afasta dos barbarismos, dos idiotismos, das formas apocopadas, das contrações e, no entanto, preserva uma expressão verossímil da fala do sujeito do tópos que pretende representar. As reticências indicam a vacilação ou os silêncios dos falantes pouco hábeis no manejo do discurso; as frases feitas (como “Parece mentira” ou “Déjese de embromar”) guardam esse sabor local sem necessidade de recorrer, quase, aos americanismos. Na última destas frases feitas, que combina resignação e fastio, Toledo faz academicamente esdrúxulo o verbo conjugado (“Déjese”) que seu interlocutor havia pronunciado agudo (“Dejesé”), segundo costume na área linguística rio-platense. No único original que dispomos deste
texto, tal frase interjetiva havia sido substituída por “¡Haga el favor!” (fólio 2), que tem o mesmo significado que a definitiva, mas soa um pouco mais solene; a que por fim escolheu habilita a diferença na acentuação do tempo verbal, suficiente para dividir os campos culturais entre os dois falantes.
Com o passar dos anos, Morosoli tende a aproximar-se da norma. Importa-lhe o simulacro da oralidade sempre e quando triunfe a escrita acadêmica e não, como antes, o resíduo do idioleto criollo que buscou refletir em sua sintaxe. Há, também, uma aposta muito mais marcada na densidade existencial dos comentários de seus personagens. Como se Morosoli tivesse observado que a mimetização com a oralidade distrai a atenção do que realmente importa: a natureza dos conflitos que são discutidos, embora sejam sempre feitos laconicamente e à maneira do camponês. Em outras palavras: dizer pouco para dizer muito7.
Ao dar esse longo passo, Morosoli se distancia do criollismo e se aproxima da narrativa que Antonio Candido chamará suprarregionalista, uma literatura que, aproveitando as tradições, os mitos, os costumes e as linguagens regionais, se sobreporá a qualquer consciência amena e despreocupada do atraso, superando o inconsciente ou o “modo insuspeito de oferecer para a sensibilidade europeia o exotismo que ela desejava como distração; e que, assim, se torna forma aguda de dependência na independência” (Candido, 1972: 349). Nesta direção, podemos pensar em Morosoli como um precursor ou – no pior dos casos – como um ignorado coetâneo de Rulfo, que, em 1953, deu a conhecer os contos de El llano en llamas, ou do primeiro García Márquez, que começou a publicar suas ficções em 19558. Nesta época, Morosoli aprendera que a oralidade deve ser até certo ponto domesticada na escrita. E a escrita traduz a desvanecida oralidade, que somente pode persistir se for feita literatura, que somente valerá se for revelação de si e do sujeito, não um costume atraído pela “baratija refranera” como disse em uma de
suas mais célebres conferências sobre literatura própria e alheia (Morosoli, “La soledad y la creación literaria”, 1971: 58). Com ideias deste tipo, que havia visto e admirado em outros, que havia seguido com respeito e, por sua vez, com prudente distância em escritores de sua região (como Erico Verissimo ou Cyro Martins), a literatura de Morosoli – que não tem semelhantes estritos do outro lado da fronteira– estava fatalmente destinada a ser lida por Sérgio Faraco. Somente tinha que descubri-lo.
Juan José Morosoli era, em 1991, um clássico uruguaio. Mas, como acontecia com seu amigo e coetâneo Francisco Espínola, por exemplo, era quase ignorado fora do país. Neste ano, em parceria com editores privados, o Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul publicou em Porto Alegre uma antologia geral de contos uruguaios (a primeira deste tipo, que saibamos, em todo o Brasil), preparada e traduzida pelos narradores Sérgio Faraco e Aldyr Garcia Schlee. Também em 1991 saiu uma pequena seleção de nove contos de Morosoli, de exclusiva tradução de Faraco, que tomou seu título de um dos contos que o autor não chegou a reunir em livro: “El largo viaje de placer”, e ao qual somente pôde conhecer através de uma difundida seleção de obras narrativas do autor9. O volume intitulado A longa viagem de prazer foi reeditado vários anos mais tarde por outra editora de Porto Alegre sem alteração alguma (Morosoli, 1991, 2009).10 O conto epônimo foi incluído na antologia coletiva que Sergio Faraco preparou com seu colega. “A longa viagem de prazer” pauta o primeiro passo da fronteira sur/sul, porque a inevitável alteração do masculino ao feminino no núcleo da frase pelo substantivo (viaje/viagem) fala das assimetrias e das complementaridades das duas línguas.
Sergio Faraco (Alegrete, 1940) havia se estabelecido na literatura gaúcha no final da década de oitenta como um de seus mais notáveis contistas. Havia aprendido especialmente de Hemingway – a quem, quase como involuntariamente, homenageia em seu conto “A dama do Bar Nevada”–, a concentração e a austeridade quase rude no dizer. Seu conhecimento da obra e, mais tarde, da pessoa do contista uruguaio Mario Arregui (1917-1985), lhe permitiu afirmar algumas ideais que já vinha cultivando sobre o conto em um momento-chave. Uma correspondência entre os dois escritores, mantida na primeira metade da década de oitenta, é um dos documentos mais notáveis que contamos para pensar as distâncias e aproximações de uma literatura de fronteira. Certamente Faraco nunca tinha ouvido mencionar o nome de Morosoli até entrar em diálogo com Arregui, embora tenha podido reforçar a notícia sobre sua qualidade literária através de Julián Murguía, com quem manteria uma amizade muito forte depois do exílio deste em Porto Alegre em 1982. Ainda que Mario Arregui não fosse um promotor fervoroso de Morosoli – como era de Borges, Quiroga e Onetti –, o recomenda para seu tradutor dentro de uma ampla lista a levar em consideração:
Além da figura principal de Onetti, a literatura uruguaia contemporânea tem nomes que muito importam: Quiroga, Morosoli, Amorim, Espínola, Benedetti, José Pedro Díaz, Martínez Moreno… Para que tais excelentes escritores sejam conhecidos pelo público brasileiro, só basta, no meu ponto de vista, contar com bons tradutores e editores valorosos (Arregui & Faraco, 1990: 80).
Em carta de 15 de abril de 1982 – ausente na edição uruguaia – entre uma
detalhada lista de onze escritores compatriotas que sugere publicar no Brasil, Arregui inclui o escritor de Minas no lugar número dez. Coloca-o atrás de Quiroga, Onetti, Benedetti, Martínez Moreno, Amorim, Díaz (dois libros), Felisberto Hernández e Espínola (Arregui & Faraco, 2009: 84). Significativamente, fora alguma obra solta de Onetti, Faraco não seguiu a ordem proposta em seus trabalhos de tradução e parece até não haver tido empatia com a literatura de Benedetti, Díaz, Martínez Moreno nem Amorim – em quaisquer dos casos, salvo parcialmente o último, de assunto urbano ou fantástico. Em troca, não parou, desde então, de traduzir histórias de Quiroga; a relativamente próxima eleição do décimo na lista fala claramente de sua afinidade estética, porque uma vez que o contista gaúcho leu algumas histórias de Morosoli, ele não pôde deixar de se interessar por elas.
Faraco começou a repensar sua própria literatura através da tradução da narrativa hispano-americana vizinha dentro dos cânones de representação ligados ao realismo (é o autor de um só conto fantástico: “Um destino para o fundador”). A tradução, dessa forma, seria para o escritor – talvez para todo escritor que a exerça – uma espécie ensimesmada e autocrítica da leitura, uma projeção fantasmática de seu projeto de escrita, um laboratório onde ensaiar as possibilidades das palavras e a sintaxe alheias buscando as combinações ajustadas e, até certo grau, próprias. Ao ler e traduzir (ou seja, ler em uma segunda potência) seus contemporâneos Arregui, Guido Rodríguez Alcalá, Mempo Giardinelli, entre outros, bem como os precedentes Quiroga ou Morosoli, a escrita de Faraco se afirmou em uma tradição, na qual –como reitera em sua troca epistolar com Arregui, que recebe a proposta com desconfiança – existe uma comunidade cultural do sul no território do pampa além das fronteiras físicas e das duas línguas. Escreve Faraco em 23 de julho de 1981: “O Uruguai e o Rio Grande se parecem. O Rio Grande padece a influência deletéria do imperialismo
cultural do centro do país e é nessa medida que teus contos recobram a índole do homem do campo – inclusive o rio-grandense – e, exagerando, sua ‘nacionalidade’” (Arregui & Faraco, 2009: 28). Responde Arregui em contundente posdata sem data: “Inobjetável isso de ‘as peculiaridades do gaúcho’, mas te direi que hoje estou um pouco distanciado do criollismo, nativismo, telurismo ou o que for. Falaremos” (Arregui & Faraco, 1990: 10). A tradução, a partir deste ângulo, funciona mais como propósito político do que como serviço cultural.
Sabemos da importância social da tradução para o conhecimento daqueles que não podem ler no original; sabemos de sua força divulgadora. Em troca, não se explorou tanto a possibilidade de conhecer os textos da própria língua de partida a partir das opções de tradução para a outra língua intercompreensível, como o português, que, por sua vez, tem que lidar com seus próprios limites em relação aos dialetismos de fronteira, que vêm do espanhol do Rio da Prata e se acumulam no arquivo de uma literatura com boas aspirações de autonomia pela metade do século XX. O caso é muito interessante a este respeito, sobretudo porque Morosoli – como foi dito – não é um escritor tipicamente gauchesco, pelo contrário, avançou para um progressivo distanciamento desse código.
Em certos meses de 1991, Faraco dá a conhecer em duas oportunidades sua tradução de “El largo viaje de placer” (“A longa viagem de prazer”) com algumas poucas diferenças entre si. Nas duas versões, leva aos extremos a atividade processual que Morosoli havia feito com suas obras, já que se inclina a atenuar quase toda a forma dialetal, escolhendo somente algumas frases ou expressões equivalentes em português. Em rigor, “El largo viaje de placer” é uma história que serve como uma luva para a estética de Faraco: diálogos de frases breves, economia de recursos verbais com singular capacidade expressiva, equilíbrio entre o local e o exterior. Quaisquer narrações de Faraco, as de Noite de matar um
homem ou ainda os contos urbanos de A dama do bar Nevada, exibem um involuntário ar familiar com o autor traduzido (Faraco, 2011).
Concentremo-nos, por esse duplo comparecimento, em “El largo viaje de placer”, sem esquecer outras traduções de contos do Morosoli. O relato apresenta uma forma piedosa do humor, construído principalmente com base nos personagens Tertuliano (outra vez o mesmo nome), que ganhou em uma rifa um caminhão velho e dialoga com Aniceto, mais modesto que seu compadre. Um tanto pudorosamente, o primeiro informa que quer ir para Rocha, porque ali “nace el sol”, interpretação personalíssima, literal e truncada do lema que se aloja no escudo dessa região, localizada no extremo oeste do Uruguai. Com essa ingênua e errônea assertiva, Morosoli parodia o discurso nacionalista e de orgulho de comarca, posto que o escudo dessa jurisdição do país reza que “Aquí nace el sol de la patria”. Aniceto, entre deslumbrado e atônito, se soma à aventura e, assim, saem com esse rumo, mas nunca atingem seu objetivo porque, antes, a polícia acredita que são contrabandistas e, por isso, os detém várias horas na delegacia. Quando, ao fim, são liberados sem muitas atenções, o cansaço e o susto deste absurdo tropeço os persuadem a voltar a seu povoado. A história se projeta além da frustração porque, diz Tertuliano, “los viajes empiezan después que uno llega” (Morosoli, “El largo viaje de placer”, 2009: 503). Em outras palavras: mais do que como imagens ou somas de experiências individuais, as viagens persistem se se tornam relatos. O relato é a viagem.
Alguns exemplos da tradução de giros orais que Faraco escolhe em português mostram as dificuldades e o balanço entre o dialeto, o sistema e a norma que, pelo menos, comprometem quatro aspectos:
1- Substantivos dialectais em função de verbos conjugados: “El Indio me
cargosiaba… y yo, nada…”. Faraco traduz na antologia geral: “O Índio cargoseando e eu nada”; logo, no volume: “O Índio insistindo e me dizendo que não”. Nos dois casos se suprimem as reticências que, também em duas ocasiões, Morosoli emprega para mostrar as longas pausas do simulado falante entre cada cláusula. Mas, além disso, a segunda tradução da passagem utiliza o gerúndio de dois verbos diferentes, primeiro reproduz a voz rioplatense (“cargoseando”), mas na versão final prefere substituí-la pela forma acadêmica (“insistindo”).
2- O plano fonológico. Em uma ocasião, ao menos, Faraco se deixa levar pelas relações entre o som e as equivalências semânticas da parêmia, recurso de que o autor uruguaio nunca abusa. Onde Morosoli escreve: “Suerte y muerte se enamoran con verte”, o escritor gaúcho traduz com excelente ouvido: “Sorte e morte escolham seu consorte”. Morosoli recorre a uma frase que conforma um endecassílabo simples confiada à rima interna com ênfase na vogal “e” e a repetição da figura fônica “te”; algo disto se translada à língua de chegada e, ainda que o refrão não tenha exatamente o mesmo sentido, permanece por associação mais no nível acústico que no semântico. Um verdadeiro achado.
3- O plano lexical. O tradutor decide não correr muitos riscos aproximando-se mais da norma em sua língua, na qual permite somente algumas filtrações dialetais de origem ou, inclusive, umas poucas palavras regionais. Alguns exemplos de “A longa viagem de prazer”:
(I) “Pasaron la noche en una fonda ‘de puchero y guiso’ y mucho antes del alba partieron hacia el Chuy”, se translada ao português como “Passaram a noite numa pensão barata e muito antes da aurora partiram para o Chuy”.
(II) “Antesmente –siguió Tertuliano– las ciudades no progresaban”, se torna “Antigamente – seguiu Tertuliano – as cidades não progrediam”.
No primeiro caso, o tradutor abole toda a potência local do sintagma colocado entre aspas por Morosoli (ou por seus editores, inexperientes no uso da itálica como marca gráfica diferencial), procedimento que exerce, como foi dito, para separar alguns termos da fala campesina do repertório acadêmico.11 No segundo caso, o “antigamente”, que tem uma perfeita correspondência com a palavra castelhana “antiguamente”, sufoca na escolha do tradutor toda a carga humorística do barbarismo “antesmente”, invenção difícil de registrar em outros textos da época.
Algo semelhante ocorre com “Mucho campo y niún alma –respondió Aniceto”, que Faraco interpreta a favor da padronização: “Muito campo e nenhuma alma – disse Aniceto” (o itálico me pertence). Ficava a possibilidade de franquear a passagem para alguns rioplatenismos para evitar a criação de neologismos de duvidosa eficácia e bom gosto, mas Sérgio Faraco aceita esta possibilidade em uma só ocasião: “Hermano –dijo Aniceto–, hemos hecho un lindo viaje”, se translada como “Hermano – disse Aniceto –, fizemos uma linda viagem”. Se quisesse, para o primeiro nome, poderia ter selecionado um termo equivalente e quase eufônico (“Meu irmão” ou simplesmente “irmão”); ao conservar o substantivo em castelhano, que qualquer leitor lusófono decodifica com facilidade, mantém o tom de fronteira e salva a cordial intensidade emocional da palavra que contagia a frase, que se expande semanticamente por toda a cena.
4- Outras tensões da oralidade na escrita. Em ocasiões, e sem nota do tradutor
que advirta a decisão – algo que habitualmente Faraco prefere não seguir em seu trabalho –, dissolve a sobrevivência oral na escrita. Este aspecto tem uma enorme importância cultural e poética. O fortemente dialetal “El compañero”, de Hombres, é finalizado com este diálogo em sua edição original:
–Compañero, v’ia seguir…
–Lo qué v’aser?
–A seguir… Qué v’ia hacer aquí? eh? Y se fué no más. (Morosoli, 1932: 38).
Dez anos depois, Morosoli modera sua linguagem, aproximando-se um pouco da norma, e adiciona uma pergunta:
–Compañero, v’ia seguir…
–Lo qué v’hacer?
–A seguir… ¿Qué v’ia hacer aquí? ¿Eh? ¿No le parece?
Y se fue no más. (Morosoli, 1967: 31 [1942]).
Esta é a versão reproduzida na antologia da qual, com certeza, Faraco traduziu o conto. Fez assim, desconhecendo as três contrações que o autor deixou vivas da primeira à segunda edição de seu livro:
–Vou embora, companheiro.
–O que vai fazer?
–Vou em frente. O que eu ia fazer, ficando aqui?
E foi-se. (Morosoli, 1991: 52).
Também em “El largo viaje de placer” se encontram alguns casos. Verbi gratia: “Así fue, pues. Y Tertuliano estaba allí con el camión”, é traduzido por “E ali estava Tertuliano com seu caminhão”. Dessa maneira, escolhe tirar o rodeio inicial e move para o começo da frase o dêitico (“allí”), que tem um leve matiz formulário na oralidade rio-platense.
Mais delicado e atrativo é o que ocorre com uma forma verbal que pode ser encontrada em diferentes textos e desempenha um papel muito destacado no eixo das relações entre significado e significante na prosa de Morosoli. Trata-se de uma expressão que, com leves permutações, regressa e que inaugura no impressionante encerramento do conto “Un gaucho”, publicado pela primeira vez no “Suplemento Dominical” do El Día em 18/XI/1951. Alguém pergunta ao protagonista desta história, ao qual ninguém tinha visto antes por esses pagos, se havia tratado o morto que estavam velando, e obtém esta resposta: “No –dijo el mozo–, pero no está lejos que fuera mi padre” (Morosoli, 2009: 377). Faraco translada ao português esse giro crucial para o conto com esta fórmula: “Não – disse o moço –, mas pode ser que tenha sido meu pai” (Morosoli, 1991: 33). “No está nada lejos que te lleve…”, diz em “El largo viaje de placer” o dono do caminhão a seu compadre. E este, em um segmento posterior do relato aponta:
“No está nada lejos que estés en lo cierto”. Faraco traduz este tão usado “no está nada lejos que te lleve” pelo factível “Pode ser que te leve”; e “no está nada lejos que estés en lo cierto” como “Pode ser, sim, que tenhas razão”. Todas suas opções são explicativas e, com elas, em certa medida, despoja a frase do viés oral em espanhol, embora moderadamente essa imprescindível matriz se reintroduza com a afirmação intermediária e entre vírgulas que está presente na segunda versão.
“A longa viagem de prazer” é um conto de Morosoli e, também, por momentos, se contagia da estética de Faraco, das ideias sobre a língua e a fala, sistema e norma com as quais escreve seus contos. À margem do conhecido debate entre literalidade e criação no ato tradutório, é corrente que isso aconteça quando os tradutores são proprietários de uma obra com uma realização identificável e com uma poética definida mais do que profissionais estritos da tradução. Se esta categoria for possível.
Faraco executa a doce vingança criativa do escritor-tradutor, a de quem adapta a sua percepção da linguagem e do mundo a de outro escritor a quem admira, respeita e, por isso mesmo, termina devorando. Outro que, como Morosoli, teve que atravessar muitas fronteiras internas em um circuito de produção não muito diferente daquele em que se moveria Faraco várias décadas mais tarde. O primeiro e mais difícil limite que Morosoli teve que atravessar foi o de adotar e fixar em sua escrita expressões dos sujeitos de seu meio. Com todos os cuidados, exerceu a difícil arte de interpretar as palavras de sua comunidade ou, quase o mesmo, traduzi-las.
Corpus
ALEMANY, Carmen (comp.). La polémica del Meridiano intelectual de Hispanoamérica (1927). Valência: Publicaciones de la Universidad de Alicante, 1998. [Reúne grande parte dos textos que, durante 1927 e 1928, discutiram a proposta de Guillermo de Torre de transformar Madrid em “meridiano intelectual da América Hispânica”].
ARREGUI, Mario; FARACO, Sergio. Correspondencia. Montevidéu: Monte Sexto, 1990. Introdução de Martín Arregui. Sem indicação de tradutor. (Ed. em português: Diálogos sem fronteira. Correspondência Mario Arregui & Sergio Faraco. Porto Alegre: LP&M, 2009. Tradução e notas de Sergio Faraco. Introdução de Pablo Rocca. Reproduz a introdução de Martín Arregui de 1990).
GARCÍA SCHLEE, Aldyr e Sérgio FARACO (comp., tradução, prólogo e notas). Para Sempre Uruguai. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1991. [Antologia geral de contos uruguaios. Inclui “A longa viagem de prazer”, de Juan José Morosoli, em tradução de Sérgio Faraco].
FARACO, Sérgio. Contos completos. Porto Alegre: L&PM, 2011. (3ª ed. ampliada).
MOROSOLI, Juan José. “Un soldado”. Original mecanografado, seis fólios, circa 1953. Coleção Juan José Morosoli, Caixa 6. Seção de Arquivo e Documentação do Instituto de Letras (SADIL), Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação, Universidad de la República, Montevidéu.
_____. “El largo viaje de placer”. Original mecanografado, cinco fólios. Coleção Juan José Morosoli, Caixa 6. Seção de Arquivo e Documentação do Instituto de Letras (SADIL), Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação, Universidad de la República, Montevidéu.
_____. “El compañero”. Hombres. Minas, Talleres de Ramón Trelles, 1932: 35-38.
_____. “El compañero”. Hombres. Montevidéu, Ediciones da la Banda Oriental, 1967: 27-31. Prólogo e notas de Heber Raviolo. Reproduz a reedição corrigida do volume realizada em Montevidéu em 1942, com o prólogo de Francisco Espínola.
_____. “Los tres compañeros”. Los albañiles de “Los Tapes”. Montevidéu/Buenos Aires, Sociedad de Amigos del Libro Rioplatense, 1936: 87-96.
_____. “Cómo escribo mis cuentos”. La soledad y la creación literaria. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1971: 97-102. Edição e prólogo de Heber Raviolo. [1945].
_____. “La novela nacional y alguno de sus problemas actuales”. La soledad y la creación literaria. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1971: 63-74. Edição e prólogo de Heber Raviolo. [1953].
_____. A longa viagem de prazer. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1991. Tradução de Sérgio Faraco. Prólogo de Heber Raviolo.
_____. A longa viagem de prazer. Porto Alegre: LP&M, 2009. Tradução de Sérgio Faraco. Apresentação de Léa Masina, prólogo de Heber Raviolo, posfácio de Pablo Rocca.
_____. Ensayo y teatro inéditos. Montevidéu: Banda Oriental/Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação/ UdelaR, 1999. Pesquisa de Luis Volonté e María G. Núñez. Bibliografia crítica da obra de Morosoli de Luis Volonté. Direção: Pablo Rocca.
_____. Cuentos completos. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental/ Biblioteca Nacional, 2009. Edição, prólogo e notas de Heber Raviolo.
SARMIENTO, Domingo F. Ortografía - Instrucción pública, 1841-1854. Buenos Aires: Ed. Luz del día, 1949. (Tomo IV de Obras Completas).
Crítica e teoria
BAJTÍN, Mijail. Teoría y estética de la novela. Madrid: Taurus, 1989. Tradução de Helena S. Kriukova e Vicente Cazcarra.
CANDIDO, Antonio. “Literatura y subdesarrollo”, em América Latina en su literatura, César Fernández Moreno (coord. e introdução). México: Siglo XXI/UNESCO, 1972: 335-353.
CANDIDO, Antonio; RAMA, Ángel Un proyecto latinoamericano (Correspondencia de Ángel Rama y Antonio Candido con un anexo con la correspondencia de Gilda de Mello e Souza a Rama y textos inéditos de Candido). Montevidéu, Hum/ Estuario, 2016. Edição, pesquisa, prólogo e notas de Pablo Rocca.
COSERIU, Eugenio. Sistema, norma y habla. In: Teoría del lenguaje y lingüística general. Cinco estudios. Madrid: Gredos, 1962: 11-113. [1953].
GROSSMAN, Rudolf. El patrimonio lingüístico extranjero en el español del Río de la Plata. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2008. Estudo preliminar de Fernando Alfón. Tradução e notas de Juan Ennis. [1926].
ROCCA, Pablo. Horacio Quiroga, el escritor y el mito (Revisiones). Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2006.
RONA, José Pedro. Dialectología general e hispanoamericana. Montevidéu: Colección de Clásicos Uruguayos, Biblioteca Artigas, 2014. Prólogo de Adolfo Elizaincín.
2 A patente ou encoberta poética que se acumula nas sobrepostas camadas de seus muitos artigos e conferências somente se tornou visível quando, bastante depois de sua morte, foram reunidos parcialmente em livro (Morosoli, 1971; 1999). Alguns poucos textos desta natureza, inclusive, ainda permanecem inéditos, resguardados no arquivo de Juan José Morosoli. Em sua grande maioria, a coleção documental de Morosoli se encontra na Seção de Arquivo e Documentação do Instituto de Letras (SADIL), Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação (Universidad de la República), ao que o incorporamos em 1999, no preciso momento em que fundamos este acervo, denominado inicialmente Programa de Documentação em Literaturas Uruguaia e Latino-Americana. A incorporação deste valioso conjunto foi possível por generosa doação das filhas do autor (Mary e Ana María Morosoli), e pela mediação de nosso inesquecível amigo Prof. Heber Raviolo (1932-2013). Alguns papéis do autor estão resguardados na Biblioteca Nacional (Montevidéu) e parte de sua biblioteca particular, sobretudo a de autores uruguaios, se encontra na Casa da Cultura do Departamento de Lavalleja, Minas.
3 Os nomes correspondem a ofícios rurais: o calagualero é aquele que faz a colheita e venda da calaguala, uma variedade agreste de samambaia com propriedades medicinais; o arenero é um ofício que consiste na extração de areia do leito dos rios para sua posterior venda em núcleos urbanos, com destino à construção ou a atividades agropecuárias, dentre outras; o monteador, neste caso, se refere àquele lenhador que percorre o monte (mato) cortando árvores para venda. Nota dos tradutores.
4 As mais famosas e, talvez, as mais bem produzidas em longas-metragens: Viento del Uruguay (Suíça-Uruguai, 1989, roteiro e direção de Bruno Soldini) e El viaje hacia el mar (Uruguai, 2001, roteiro e direção de Guillermo Casanova).
5 No exílio, Sarmiento preparou um relatório que leu na Faculdade de Humanidades de Santiago do Chile, em 17 de outubro de 1843. Nesta obra apostrofa: “O que é hoje o idioma espanhol? É por excelência o idioma de traduzir, e a célebre jeremíada de Larra “choremos e traduzamos”, é a expressão mais lacônica da sentença à que condenaram o pensamento espanhol os temerários que se encarregaram em outro tempo de fazer-se uma civilização à parte. Toda vez que um espanhol se resolva a pensar, uma voz secreta dizer-lhe-á: há duzentos anos que isso já foi pensado, traduzi, pois, e deixai-vos de pretensões; haveis chegado tarde”. E, mais adiante, acrescenta: “A Espanha não possui um só escritor que possa nos educar, nem tem livros que nos sejam úteis. Este é o ponto capital. Em nossas escolas, como nas da Espanha, está adotado o catecismo de Astete, que é traduzido do francês; o de Poussi, que igualmente é […] Os livros adequados para proporcionar leituras agradáveis e instrutoras à juventude são igualmente traduzidos” (Sarmiento, 1949: 12 e 38).
6 Esse “taría legal” é evidente lusitanismo (pelo “tá legal”) que ainda é de uso cotidiano em grande parte do Brasil e que, nos últimos anos, se tornou muito frequente no espanhol rio-platense entre as gerações mais novas. Francisco Álvez me comunica que escutou no Uruguai, várias vezes, a frase “Todo legal” e que há um verso do músico e intérprete Fito Páez, de uma canção de 2010, que diz “es una piba legal”. Em todo caso, o surpreendente é que a expressão tenha chegado tão cedo ao centro-sul uruguaio, Minas, um lugar de pouco trânsito e bastante distante da cultura fronteiriça.
7 Devo esta última observação à mestre Gabriela Sosa San Martín, a quem agradeço a leitura de uma primeira versão deste trabalho.
8 Tanto Rulfo quanto García Márquez serão analisados por Candido como suprarregionalistas. O grande crítico brasileiro desconheceu a obra de Morosoli, mas não seu amigo Ángel Rama, que, além de muitas referências passageiras, escreveu sobre dois de seus livros: “Juan José Morosoli, amigo de los vivientes”, El País, Montevidéu, 4/I/1958 [Sobre Vivientes] e “La retórica de un creador”, Marcha, Montevidéu, Nº 959, 15/V/1959 [Sobre Tierra y tiempo]. Apesar do enorme entusiasmo que o crítico uruguaio demonstrou pelo conceito de suprarregionalismo e de sua posterior reconversão no de transculturação narrativa, Rama esqueceu o caso Morosoli dentro dessas operações técnicas e culturais. Sobre o surgimento e desenvolvimento destas ideias, veja-se a correspondência entre os autores (Candido & Rama, 2016).
9 O relato foi publicado pela primeira vez no Almanaque del Banco de Seguros del Estado, de 1953. Em livro, em Cuentos escogidos, Juan José Morosoli. Montevidéu, Ediciones de la Banda Oriental, 1964. (Seleção, prólogo e notas de Heber Raviolo). Este volume, que toma contos de todas as coleções publicadas por Morosoli e mais algumas obras que deixou soltas (como “El largo viaje de placer”), teve muitas reimpressões nos anos sessenta e setenta e até o fim da década seguinte pelo menos duas reedições parciais, sempre com o mesmo título. Posto que antes de 1991 era o volume mais abarcativo dos contos de Morosoli, deve ter sido este que leu o escritor rio-grandense para realizar su breve antologia, tanto em sua versão mais extensa como a mais abreviada. Por outro lado, os volumes avulsos de cada obra de Morosoli não eram fáceis de encontrar, nem sequer por quem buscasse nos sebos de Montevidéu em 1990, levando em conta que o grande plano de obras que Raviolo levou adiante em suas Ediciones de la Banda Oriental entre 1967 e 1971 ficou truncado e, depois, somente foi reeditado algum livro isolado (o romance Muchachos, Tierra y tiempo). O próprio crítico e editor, que fez o prólogo do volume publicado em Porto Alegre – e que, portanto, pôde assessorar Faraco e obviamente conheceu a coleção antes de que fosse impressa –, se encarrega de dar-nos uma pista e uma orientação simultâneas sobre o uso do tradutor de um volume antológico e de suas preferências pelos textos de sua maturidade, que eram também as suas: “Com exceção de “O companheiro”, pertencente ao seu primeiro livro de contos (Hombres, 1932), os demais são todos da sua maturidade criadora. “A longa viagem de prazer” e “A viagem até o mar” nunca foram publicados em livro pelo autor e apareceram em volumes póstumos. Os demais pertencem a Tierra y tiempo (1959) [...] preparado e ordenado pouco antes de seu falecimento” (Raviolo in Morosoli, 1991: 19). Veja-se detalhamento dos contos selecionados na próxima nota.
10 O volume inclui os seguintes textos, nesta ordem: “O burro” (“El burro”), “Um gaúcho” (“Un gaucho”), “Dois velhos” (“Dos viejos”), “O companheiro” (“El compañero”), “Solidão” (“Soledad”), “O aniversário” (“El cumpleaños”), “A longa viagem de prazer” (“El largo viaje de placer”), “O viúvo” (“El viudo”), “A viagem até o mar” (“El viaje hacia el mar”). Os textos para crianças de Morosoli reunidos em Perico, com tradução de Charles Kiefer, foram publicados em Porto Alegre pela Editora Mercado Aberto, sem data. O volume contém ilustrações de Leonardo Menna Barreto Gomes.
11 No acervo universitário que preserva os materiais de Morosoli, só há duas cuidadas cópias mecanografadas de “El largo viaje de placer”, certamente por Raviolo quando, em 1964, publicou em livro, pela primeira vez, este relato. Nessas cópias, o vocábulo fonda aparece entre aspas e, depois, idêntico recurso gráfico é empregado com “de puchero y guiso”. Na versão impressa, o editor os reuniu sob as mesmas aspas.
Pablo Rocca
Tem um doutorado em Literaturas Espanhola e Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo (Brasil). É professor titular de Literaturas Uruguaia e Latino-Americana na Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação na Universidad de la República (Uruguai). Dirigiu a Seção de Arquivo e Documentação do Instituto de Letras da mesma instituição desde sua fundação até 2016 . Tradutor de diversos autores brasileiros: Machado de Assis, Murilo Rubião, Cyro Martins, Tabajara Ruas, Sergio Faraco, entre outros.