Este já é o terceiro ano da revista Pontis. Desde nossa primeira edição, em março de 2016, publicamos dez números e percorremos diferentes textualidades: traduzimos textos de autores de princípio do século XX, bem como de jovens escritores; passamos por contos, fragmentos de romances e crônicas; tivemos o prazer de traduzir autores uruguaios e brasileiros, além de um autor português. Durante estes dois anos, participamos de eventos acadêmicos, organizamos palestras e oficinas sobre tradução literária, especificamente entre espanhol e português, o que nos levou a diferentes lugares de Montevidéu, Rivera, Artigas, Concordia, Santiago de Chile, Florianópolis, Porto Alegre e Rio de Janeiro; construímos redes de colaboração de trabalho com várias universidades e organizações e continuamos buscando novos desafios. Por tudo isso, e pelo que virá, temos muito para celebrar.
Neste número, deixamos de lado a linha adotada nas últimas edições, a divulgação de autores contemporâneos, para termos o prazer de veicular uma das principais vozes da narrativa uruguaia: Juan José Morosoli (1897-1957). Depois de cumpridos sessenta anos de sua morte, homenageamos este grande autor em nossa primeira edição deste 2018.
Parte de sua obra já foi traduzida ao português: Sergio Faraco, escritor e tradutor brasileiro, levou a essa língua vários dos contos de Morosoli, que foram reunidos no livro A longa viagem de prazer, publicado em Porto Alegre, com prólogo de Heber Raviolo, pela editora L&PM em 2009.
Graças à amável colaboração deste prodigioso escritor, na presente edição de Pontis vocês poderão ler a versão ao português do conto de Morosoli “El burro”, feita por Faraco para o mencionado livro, bem como a entrevista concedida à Pontis para a seção “O fazer do tradutor”. Por outro lado, no que diz respeito ao nosso trabalho, selecionamos para publicar e traduzir quatro contos de Morosoli dos quais não encontramos tradução prévia disponível. Isso nos levou a recorrer parte de sua obra talvez menos conhecida ou abordada em profundidade pela crítica, caminho que resultou tão surpreendente quanto prazeroso.
A proposta de traduzir contos de Morosoli fez parte do projeto fundacional da revista. Por essa razão, em dezembro de 2016, tivemos a oportunidade de organizar, junto com o centro cultural La Casa Encantada de Minas, uma atividade em sua homenagem, da qual participaram convidados especiais e na qual pudemos conhecer um pouco mais de perto a obra deste emblemático autor.
Não obstante, dada a imensa complexidade da tarefa, o processo de tradução nos levou muito mais tempo do que imaginamos inicialmente. Nos contos selecionados, a fala dos personagens, com seus refrães e vocabulário próprios do ambiente rural, as referências permanentes ao homem do campo e ao mundo em que vive, a distância cronológica com os narradores, entre outros aspectos, fizeram deste projeto de tradução o mais ambicioso e desafiante que nossa equipe assumiu até o momento.
Esta tarefa não teria se concretizado com sucesso sem a valiosa contribuição do escritor e tradutor brasileiro Paulo Henrique Pappen, que, além de colaborar com empenho em todo o processo de tradução dos contos de Morosoli, participa desta edição com a autoria de uma dessas traduções.
Como já mencionamos, para a seção “O fazer do tradutor”, realizamos uma entrevista com Sergio Faraco, escritor rio-grandense e tradutor ao português de grandes autores latino-americanos, entre eles Morosoli. Graças a seu trabalho, se publicou A longa viagem de prazer (Porto Alegre: L&PM, 2009), livro que se transformou no embaixador de nosso autor minuano no Brasil. Na entrevista, Faraco nos conta sobre os desafios de traduzir este autor, suas afinidades com a literatura uruguaia e algumas das particularidades da tradução entre o par de línguas espanhol-português.
Na seção “Apresentação do autor”, contamos com o texto “Dialeto, norma, fronteiras: Juan José Morosoli ‘tradutor’ e traduzido por Sergio Faraco”, de Pablo Rocca, professor titular de Literatura Uruguaia no Departamento de Literaturas Uruguaia e Latino-Americana da Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação da Universidad de la República. No seu texto, Rocca, ao evidenciar os problemas de trasladar a oralidade intrínseca dos textos de Morosoli às possibilidades e restrições formais da norma de língua espanhola, discorre sobre o processo de tornar compreensíveis formas dialetais do espanhol que, em diferentes graus, se aproximam ou se distanciam da norma linguística, a qual, muitas vezes, termina por incorporar a forma expressiva sugerida pelo autor.
Tendo em vista o rico diálogo entre a literatura gauchesca no Rio da Prata e a produção literária no sul do Brasil, Rocca analisa a forma pela qual Juan José Morosoli deparou-se com o desafio de escrever uma literatura que escapasse da mera representação da fala e dos dialetismos próprios da sua região, atingindo questões filosóficas universais, e contrapõe esta forma tão particular com as versões escritas em língua portuguesa, na fronteira sul do Brasil, por Sergio Faraco, o qual enfrentou problemas análogos em outro contexto de língua. Para Rocca, “em um e outro caso, o conflito entre dialeto e norma pode tornar-se uma luta cultural e estética”.
Neste número, escolhemos publicar e traduzir os seguintes quatro contos:
● «Andrada»: o semblante de um homem que desfruta do silêncio e da natureza. Tradução de Federico Sörensen e Manuela Pequera.
● «Arboleya»: história de amizade na qual o protagonista toma consciência de sua verdadeira solidão, condição frequente do homem de campo. Tradução de Mayte Gorrostorrazo e María Noel Melgar.
● «O cachorro»: relato, por momentos sórdido, sobre um solitário posteiro de estância e seu cachorro, que, juntos, isolados, no silêncio, criaram um vínculo difícil de entender. Tradução de Leticia Lorier e Verónica Machado.
● «Mateiros»: conto sobre a amizade entre dois homens — um do interior, outro da cidade — no qual os sonhos de cada um e as forças políticas que passam a defender acabam por forjar o caminho desta relação. Tradução de Paulo Pappen.
Além disso, com a autorização do tradutor Sergio Faraco, aproveitamos para veicular sua versão do conto "El burro", publicado em A longa viagem de prazer (2009). Acreditamos ser muito fértil publicar um exemplo de sua produção, por facilitar a visualização dos conceitos explicitados pelo professor Pablo Rocca na seção “Apresentação do autor”, e permitir, para leitores que estão conhecendo pela primeira vez Morosoli, um contato inicial com as célebres versões de Faraco.
No que diz respeito às edições consultadas dos contos de Morosoli selecionados, para poder comparar diferentes exemplares, fomos à Biblioteca Nacional e ali tivemos acesso às seguintes edições: Los albañiles de Los Tapes (Montevidéu, Publicaciones de la Universidad de la República, 1961; Montevidéu, Ediciones de la Banda Oriental, 1969; 1985) e Tierra y tiempo (Montevidéu, Ediciones de la Banda Oriental, 1982; 1999). No momento de transcrever os contos, sempre tendo como guia a clara alusão nestes textos de Morosoli à fala e aos usos linguísticos próprios de sua região, decidimos realizar algumas sutis alterações nos textos — com o objetivo de harmonizá-los com os critérios editoriais da revista —, detalhados a seguir: quanto ao emprego de diacríticos, substituímos as aspas por itálico exclusivamente naqueles casos em que era evidente o emprego deste sinal gráfico para indicar o registro ou a acepção não estândar de uma palavra ou expressão, e reservamos, assim, o emprego das aspas para assinalar aquelas que poderiam ser consideradas palavras textuais de algum dos personagens; no que concerne ao uso de sinais gráficos duplos em espanhol (como o travessão ou os sinais de
interrogação e de exclamação), quando detectamos a omissão de algum dos sinais de abertura ou encerramento, o acrescentamos; por último, partindo da base de que o próprio Morosoli, ao menos nos contos selecionados, não descartou o uso de grafias não convencionais para recuperar marcas próprias da oralidade de seu ambiente campesino (por exemplo, o uso da voz qui por que), substituímos em poucos casos o uso do apóstrofo por grafias que, sem deixar de constituir marcas de um registro oral ou não estândar, já haviam sido empregadas pelo próprio Morosoli (como o caso da grafia q’, que na presente edição substituímos por qui), bem como também adaptamos o uso do apóstrofo às restrições da atual normativa ortográfica do espanhol (por exemplo, na expressão original la cola el’mundo mudamos o apóstrofo de posição e o colocamos entre cola e el, no entendimento de que o som elidido é o correspondente ao som inicial da preposição de).
Uma vez mais, agradecemos a colaboração das docentes Cleci Bevilacqua, Liliam Ramos e Karina Lucena da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), que realizaram o grande trabalho de revisão das traduções dos contos. Nesta oportunidade, convidaram Mariana Carpi, estudante da Licenciatura em Letras, opção espanhol, da mesma universidade, para participar do processo. Este tipo de colaboração faz de Pontis um projeto que tenta incluir a formação em tradução literária como parte de seu processo editorial.
Nesta nova etapa, além disso, temos a alegria de incorporar à equipe a colaboradora Andrea Moll, que trabalhará junto com Amanda Duarte na correção dos textos em português.
Continuamos com o fantástico retrato que acompanha a seção “Apresentação do autor” em cada número da mão de Emiliano Santos. Os contos foram ilustrados por Nataly González, talentosa desenhista convidada para nossa edição no 10. Também queremos agradecer ao tradutor e escritor Fabio Descalzi, que escreveu um lindo artículo sobre Pontis para a enciclopédia Wikipedia.
Como em todas nossa edições, terão a possibilidade de escutar as gravações dos textos originais e traduzidos. Nesta ocasião, contamos com a colaboração de Larissy dos Santos, quem fez a leitura dos contos “Mateiros” e “Arboleya”. Também agradecemos especialmente a Leandro Fernández Minetti por seu trabalho na gravação e edição de todos os áudios.
As ilustrações e os áudios das leituras, tanto em espanhol como em português, estão disponíveis em formato vídeo em nosso canal do Youtube. Também é possível acompanhar nosso trabalho através do Facebook e do Twitter.
Para finalizar, queremos contar-lhes que temos a honra de apresentar a leitura do conto “El burro” com música do grande Mario Rodríguez Lagreca e voz do queridíssimo professor Washington Bocha Benavides. É a ele que queremos dedicar nossa décima edição, em memória deste gigante das letras, de quem, depois de um dia de termos publicado nosso primeiro número, recebemos a primeira mensagem por meio da qual se colocava à inteira disposição para colaborar com nosso projeto. Salve, Bocha!