A partir de 2013, quando Portugal foi o convidado de honra na Feira Internacional do Livro em Bogotá, várias editoras colombianas se propuseram a traduzir literatura portuguesa, e, desde então, publicaram coleções que, em sua maioria, até hoje continuam apresentando novidades. Entre os autores traduzidos, encontra-se o escritor contemporâneo Afonso Cruz, que é talvez o português com mais títulos traduzidos na Colômbia nos últimos anos. Eu tive a oportunidade de traduzir para o espanhol O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (El pintor debajo del lavaplatos, Tragaluz, 2013), A Contradição Humana (La contradicción humana, Tragaluz, 2014), Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Los libros que devoraron a mi padre, Panamericana, 2014) e Enciclopédia da Estória Universal (Enciclopedia de Historia Universal, Tragaluz, 2015), e, com base nessa experiência, vou analisar aspectos centrais na linguagem deste autor que determinaram alguns problemas representativos do trabalho de tradução em dois dos títulos mencionados.
Pela sua extensão, a tradução de O Pintor Debaixo do Lava-Loiças supôs um trabalho mais desafiante do que o de volumes de histórias infantis, como A Contradição Humana. Mais do que apenas pelo número de palavras, isso se deveu ao fato de que a extensão desempenha um papel crucial na proposta romântica
do autor, uma vez que lhe permite repetir, variar e aprofundar as viradas linguísticas que caracterizam sua prosa. Uma das tarefas iniciais na tradução deste romance foi identificar o limite entre as particularidades linguísticas próprias do português e as propostas por Cruz. Evidentemente, em cada tradução é essencial distinguir os momentos em que a linguagem padrão começa a ser moldada, o que acontece, neste caso, por meio do uso repetido, original ou mesmo pela omissão de certas estruturas. Finalmente, trata-se de capturar os momentos em que o autor se desempenha como criador de uma linguagem autônoma e de manter o efeito da afetação original na segunda língua. A tradução deste romance, bem como dos outros títulos mencionados, parte da premissa de que Cruz transgride intermitentemente os limites da linguagem comum, criando um território individual onde as palavras se movimentam com sintaxe, cacofonia e visualidade próprias.
Esses três aspectos — ordem, som e imagem — formam o fundamento da tradução de Cruz, pois revelam o grau de desapego dos lugares comuns na linguagem proposta pelo autor. O uso da terminologia espacial (território, deslocamento, distância, lugares comuns) ou a ênfase da sua importância na análise da tradução não são infundados, pois em seu trabalho Cruz prioriza o efeito visual tanto na forma quanto no conteúdo. No caso de O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, temos uma história sobre um artista visual que se desloca ao redor do mundo marcada por reflexões em torno da geometria e construída com base em estruturas gramaticais que se referem a mais metáforas geométricas: os círculos sugeridos pela dêixis e pela autorreferencialidade, e as espirais sob a forma de uma mise en abyme suscitadas pelos incisos.
O Pintor Debaixo do Lava-Loiças é um texto paradoxal, já que entrelaça uma sintaxe simples com uma complicada e, entrementes, essa particularidade da forma espelha um conteúdo que também se desenvolve em um vaivém de complexidade. Estamos diante de um romance de aparência juvenil, escrito em um tom simples que, a título de fábula ― de estrutura direcionada a um público infantil ―, apresenta uma sucessão de ideias filosóficas complexas. Essas frases, que críticos como Giuseppe Caputo (2013) compararam com O Pequeno Príncipe, a meio caminho entre a didática infantil e o ceticismo adulto, simplificam e, ao mesmo tempo, problematizam a realidade dos personagens. Portanto, é comum encontrar frases que enunciam problemas filosóficos e, paradoxalmente, pretendem complexificar as ideias com base na força do breve: “É assim a vida. Tudo mata tudo. Quando precisamos comer, matamos. É o ciclo da vida” (O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, p. 48). De fato, a brevidade dessas orações consiste no uso de estruturas básicas de sujeito e predicado simples com poucos complementos. Esta possível tensão entre forma e conteúdo, que Caputo (2013) chama de “troca difícil”, constitui um primeiro nível de distorção linguística segundo o qual o autor quebra com os limites dos gêneros literários e estabelece novas correspondências, neste caso, entre um discurso e as estruturas alheias que, às vezes, o enquadram.
O respeito pela extensão das orações foi mantido na tradução para o espanhol precisamente por causa da importância metafórica que isso supõe. Cruz narra a história de um paradoxo ― a vida do que o protagonista é e não é; o relato das palavras que são lidas e as que nunca foram escritas ― por meio de uma estrutura que faz uso desse mesmo recurso. Assim, a forma paradoxal oscila entre o fragmentado e o extenso, razão pela qual a tradução mantém, na maioria
dos casos, a forma como o idioma original é moldado e truncado pela fragmentação. O português não é, necessariamente, uma língua que demande síntese. De fato, ele permite facilmente o uso de perífrases verbais, circunlocuções e estruturas repetitivas, bem como o espanhol. De acordo com isso, o abuso de frases curtas no romance revela uma noção de fragmentação que procura um efeito rítmico e, como propomos aqui, também metafórico, pois corresponde ao conteúdo do romance: uma história de vidas truncadas, de capítulos breves que, como fotografias, revelam vidas através do efêmero e aparentemente superficial.
Paradoxalmente, a fragmentação também é alcançada através da extensão. Mediante orações mais complexas, Cruz consegue um efeito similar de brevidade incorporando, repetidamente, parágrafos e frases dentro de frases. Lemos orações como “Mas tudo isso, apesar de vão, era uma distração” e “Amanhã irei pessoalmente, à noite, destruir todos os encostos da academia” (O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, p.62); “As cenas banais que existem dentro das paredes são, muitas vezes, crimes” (O pintor..., p.65); ou “Ninguém, lá no topo da governação, sabe se o povo realmente existe” (O pintor..., p.112). Essas citações compartilham certa compulsão pela separação de cláusulas que normalmente seriam justapostas do ponto de vista estilístico. Nós vemos que os incisos com funções adverbiais, como “muitas vezes” ou “à noite”, separam o núcleo do sujeito ou o predicado de seu respectivo complemento e geram uma sonoridade ligeiramente afetada. Em vez de lutar em uma tradução que simplificasse a fragmentação ― de optar por frases como “Mañana en la noche iré yo mismo a destruir todos los espaldares de la academia” ― a tradução replicou essa tentativa de complexificar partindo do simples, através de uma estrutura sintática como uma cebola, que corresponde a uma narrativa altamente metafórica e filosófica composta por camadas dentro de camadas.
A sintaxe que desloca o lugar de certas cláusulas e que, deliberadamente, dificulta a leitura é complementada pelo segundo recurso mencionado acima: a tendência à cacofonia. De fato, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças é um texto escrito com excesso de redundância e repetição, o que, por sua vez, faz da obra uma megaestrutura circular. Por um lado, o texto original apresenta uma circularidade ou dêixis que, às vezes, é típica do português, especialmente no uso de pronomes pessoais que aparecem profusamente no início das orações (ela, ele) ou no uso de pronomes demonstrativos (aquele, aquela), em momentos em que o espanhol optaria por um pronome pessoal: por exemplo, enquanto em espanhol lemos “Atravesar las paredes y mostrar lo que no se ve” (El pintor..., p.65, itálicas minhas), no original se lê “Atravessar as paredes e mostrar aquilo que não se vê” (O pintor, p.79, itálicas minhas). Portanto, a tradução do português para o espanhol deve inevitavelmente “limpar” certas ocorrências dêiticas próprias do português.
No entanto, o texto (e, portanto, a tradução) contém outras formas de circularidade e reiteração que não são necessariamente específicas do idioma e que cumprem duas funções: por um lado, enfatizam o tom infantil, pois a repetição se torna um recurso próprio da didática ― da fábula ―; e, por outro lado, constituem uma metáfora de uma das ideias centrais ao longo do livro (ideia que, por sua vez, é também uma metáfora da realidade proposta nele): toda linha reta é uma parte infinitesimal de uma circunferência. Em outras palavras, o conteúdo e a forma levam o leitor a conceber a circularidade como um destino inevitável e, portanto, não faria sentido optar por estruturas linguísticas que quebrassem esse efeito visual.
Consequentemente, o leitor encontra concatenações de frases repetitivas e redundâncias hilariantes que parecem querer parodiar tautologias, quebra-cabeças ou trava-línguas infantis: “O seu passado parecia ter ficado definitivamente para trás, mas o passado nunca fica para trás. Anda sempre connosco. Mais ainda, vai à nossa frente ― o futuro só o vemos através desse passado.” (O pintor…, p.71).
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Uma das características centrais do trabalho de Afonso Cruz é que a forma e o conteúdo se correspondem não apenas em um mesmo livro, mas também intertextualmente. Ou seja, as particularidades de O Pintor Debaixo do Lava-Loiças não são exclusivas deste romance. Em outras obras, vemos os mesmos problemas: o estilo intrincado e, ao mesmo tempo, simples; a confusão do limite entre romance e gênero infantil; algumas obsessões temáticas ― a circularidade, o paradoxo, a realidade e a linguagem escorregadias ―; e até mesmo personagens comuns a diferentes obras ― Agnese, por exemplo, a personagem da Enciclopédia da Estória Universal que também aparece brevemente em A Contradição Humana ―. A implicação mais óbvia é que qualquer critério de tradução, por mais independente que seja a obra (como O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, ao contrário da Enciclopédia da Estória Universal, que é um projeto de vários volumes), necessariamente tem implicações em outros livros. No caso da Enciclopédia da Estória Universal, além do fato de que o texto apresenta os paradoxos já mencionados, surge um problema adicional devido à sua natureza de compêndio.
Apesar da proximidade linguística, uma tradução do português para o espanhol pode apresentar desafios nos casos em que é essencial preservar a morfologia das palavras. Ao traduzir poesia, por exemplo, tentar aproveitar a etimologia comum para manter uma rima ou um som pode ao mesmo tempo representar dificuldades métricas. No caso da Enciclopédia da Estória Universal, sua tradução causou problemas devido à variação ortográfica de um idioma para outro. Ao zombar do propósito das enciclopédias, este livro, como toda paródia, faz uso da mesma estrutura de que zomba: as entradas enciclopédicas rigidamente dispostas de a a z. Ao longo do livro, as entradas compõem várias histórias que se desenrolam de forma intermitente e paralela, o que complica a ordem da obra, pois existem linhas narrativas simultâneas que progridem de forma intempestiva. Dada a dificuldade de manter uma equivalência ortográfica e alfabética nos subtítulos de cada entrada, foi inevitável que a tradução alterasse dita paródia da rigidez sem, ao mesmo tempo, perder a falsa sensação de rigorosidade nem a progressão lógica das linhas narrativas.
Em alguns casos, a tradução altera a ordem das entradas. Este é o caso do originalmente intitulado “(Dormir no) chão”, que se encontra na seção do c, entre as entradas “Cerveja fermentada filosoficamente” e “Classicismos”. A tradução literal, “(Dormir en el) piso” ou “(Dormir en el) suelo”, obviamente alteraria a entrada para a seção do p ou do s, uma intervenção que teria sido muito notória. Nossa solução neste tipo de caso foi alterar a ordem tanto quanto possível dentro do limite de cada seção (de cada letra), desde que a entrada não fizesse parte de nenhuma linha narrativa intermitente que pudesse perder continuidade lógica após a alteração.
Neste caso, optamos pela tradução “(Dormir sin) cama”, que não só transmite o mesmo sentimento de despojo ― a mesma imagem paupérrima ―, mas que também permite manter a entrada na letra c, apesar de alterar ligeiramente a posição, já não entre “Cerveza fermentada filosóficamente” e “Clasicismos”, mas entre “Caja torácica, corazón de piedra” e “(Hueso de) cereza”.
No exemplo anterior, é importante enfatizar que o próprio autor brinca com o suposto rigor alfabético da enciclopédia, utilizando os parênteses para simular uma ordem. Em vez de classificar “Dormir no chão” no d, o parêntese é o encarregado de priorizar a palavra que permite manter a entrada no c. A suposta rigidez da ordem alfabética sutilmente ridicularizada dá espaço para que as alterações da tradução se tornem uma extensão do jogo de paródia, sempre dentro dos limites da coerência narrativa.
Finalmente, vale a pena mencionar alguns casos em que o título da entrada foi alterado para preservar a inicial, mas sempre com base em uma solução sugerida pelo próprio texto. Este é o caso da entrada em português intitulada “Figos-da-índia”, cuja tradução literal, “Higos de la India”, teria deslocado a entrada para outra letra. A solução foi preservar o nome científico que é mencionado no próprio texto da entrada, bem como adicionar um parêntese, como o próprio autor propõe em outras ocasiões: “(Opuntia) ficus indica”.
Apenas uma entrada apresentou maior dificuldade: “Fígado”, que inevitavelmente teve que passar para o h, “Hígado”, uma decisão que não afetou a cronologia narrativa. Outro caso representativo é o de “O que está embaixo é o mesmo que está em cima”, entrada que era fundamental manter dentro da letra o, e, portanto, era impossível traduzi-la literalmente (“Lo que está abajo es lo mismo que lo de arriba”). Portanto, optamos por uma solução sugerida no texto da própria entrada, que fala sobre o Orco e o Éden como duas faces da mesma coisa. Assim, o título traduzido mantém a entrada no o e, embora mude, transmite a mesma ideia: “Orco y Edén son lo mismo”. Em outros casos, encontraram-se equivalências facilitadas pela coincidência de sinônimos ― “Buracos” foi traduzido por “Boquetes” em vez de “Huecos” ― ou por soluções involuntárias: “Quarto andar e andar de quatro: uma refutação a Terêncio” foi traduzido como “Quinto piso y cuatro patas: una refutación a Terencio”, uma vez que a contagem de andares em Portugal difere da empregada na América Latina (o primeiro andar português é o segundo na Colômbia). Neste último caso, vale a pena notar que, embora não tenha sido possível manter o jogo de palavras do português (“andar” significa tanto ‘chão’ como ‘a ação de se mover’), a tradução sugere a mesma ideia coloquial, “andar en cuatro”, priorizando a sonoridade dos cinco silábicos do original.
Referências
CAPUTO, Giuseppe (2013). Iluminaciones. Revista Arcadia. 12 de abril de 2013. Disponível em: <http://www.revistaarcadia.com/impresa/especial/articulo/novela/31610>.
CRUZ, Afonso (2015). Enciclopedia de Historia Universal. Tradução ao espanhol de Nicolás Barbosa López. Medellín: Tragaluz.
CRUZ, Afonso (2013). El pintor debajo del lavaplatos. Tradução ao espanhol de Nicolás Barbosa López. Medellín: Tragaluz.
CRUZ, Afonso (2011). O Pintor Debaixo do Lava-Loiças. Lisboa: Caminho.
CRUZ, Afonso (2009). Enciclopédia de Estória Universal. Lisboa: Quetzal.
HUTCHEON, Linda (2000). A Theory of Parody: The Teachings of Twentieth-century At Forms. Urbana: University of Illinois Press.
TYSON-WARD, Sue (2008). Portuguese Verbs and Essentials of Grammar. New York: McGraw Hill.
Nicolás Barbosa López nasceu em 1988 em Bogotá. É formado em Literatura pela Universidad de los Andes (Colômbia) e, atualmente, cursa um PhD em Literatura Portuguesa na Brown University (Estados Unidos). Desde 2013, foi responsável pela tradução ao espanhol de mais de quinze obras portuguesas publicadas na Colômbia e na Espanha de autores como Fernando Pessoa, José de Almada Negreiros, Afonso Cruz, Valter Hugo Mãe e José Tolentino Mendonça. Como editor, publicou prosa, teatro e poesia pessoana nas edições bilíngues El banquero anarquista (Tragaluz, 2013), El marinero (Tragaluz, 2015) e Pessoa múltiple (FCE, 2016). Foi palestrante em congressos de tradução e estudos portugueses em universidades da América do Sul e da Europa, professor de língua inglesa na Universidad Nacional de Colombia e consultor literário da Embaixada do Reino dos Países Baixos em Bogotá.