Todos nos lembramos de, em criança, nos contarem histórias terríficas — nas noites de Inverno à ...
Todos nos lembramos de, em criança, nos contarem histórias terríficas — nas noites de Inverno à volta da lareira — de fantasmas, mortos-vivos, almas penadas e monstros nefandos. A mim, essas histórias não diziam nada: na altura não ligava muito ao que se passava na política. As que me provocavam verdadeiramente horror eram as histórias de repartições públicas, especialmente de finanças. Destas recordo, com especial insónia, a do Sétimo Bairro Fiscal, bem perto da casa dos meus pais.
Contaram-me — e juravam ser verdade — que muitos papéis que lá entraram nunca mais saíram. Lembro-me especialmente bem da história duma certidão que foi brutalmente carimbada para, no final, ser amarrotada e, horror, despejada num balde de lixo por baixo de uma secretária obsoleta. Uma certidão que nem sequer tinha feito dezassete anos.
De resto, uma pessoa comum, sem treino militar específico, quando atacada pela burocracia, tem muito poucas possibilidades de sobreviver. Mesmo que ande com crucifixos e estacas de madeira.
Um amigo de um amigo (não vou dizer nomes) entrou um dia num desses edifícios para pedir uma certidão. À sua frente surgiu um homem fabuloso — que poderia ser um mito grego — com aqueles óculos de massa que caracterizam todos os mitos clássicos, um metro e sessenta de altura, calvo e de camisa aos quadrados. O amigo do meu amigo disse-lhe com uma coragem de pedra vulcânica:
— Queria uma certid...
Todos nos acordamos de que, cuando niños, nos contaban historias terroríficas —en las noches de invierno alrededor de la estufa— de fantasmas, muertos vivos, almas en pena y monstruos nefandos. A mí esas historias no me decían nada: en aquella época no le daba mucha bolilla a lo que pasaba en la política. Las que verdaderamente me provocaban terror eran las historias de oficinas públicas, especialmente las de finanzas. De estas recuerdo, con especial insomnio, la del Séptimo Barrio Fiscal, muy cerca de la casa de mis padres.
Me contaron —y juraban que era cierto— que muchos papeles que allí entraron nunca más salieron. Me acuerdo especialmente bien de la historia de un certificado que fue brutalmente sellado para, finalmente, ser arrugado y, horror, tirado a un tacho de basura debajo de un escritorio obsoleto. Un certificado que ni siquiera había cumplido diecisiete años.
Además, una persona común, sin entrenamiento militar específico, cuando es atacada por la burocracia, tiene muy pocas posibilidades de sobrevivir. Aunque ande con crucifijos y estacas de madera.
Un amigo de un amigo (no voy a dar nombres) entró un día a uno de esos edificios a pedir un certificado. Ante él surgió un hombre fabuloso —que podría ser un mito griego— con aquellos lentes de armazón grueso que caracterizan a todos los mitos clásicos, un metro sesenta de altura, calvo y de camisa a cuadros. El amigo de mi amigo le dijo con el coraje de una piedra volcánica:
—Quisiera un certif…
O outro interrompeu-o com a sua voz de abismo, helénica, naquele tom de quem pede desculpa:
— É muito simples: tem de me trazer uma cópia do seu cartão de cidadão assinada e autenticada em notário, um ganso-patola-de-patas-azuis autografado por Darwin e o seu cartão de eleitor. Ainda acresce trazer uma prova inequívoca da existência de Deus sem qualquer referência a São Tomás de Aquino, bem como uma declaração de impostos do ano transacto e um elefante indiano. Evidentemente, todos os papéis deverão ser verdes.
O amigo do meu amigo ficou lívido percebendo que ali, mesmo à sua frente, encontrava-se o absurdo da existência. E quem diria que o absurdo da existência usava camisa aos quadrados e óculos de massa?
O amigo do meu amigo perguntou:
— Como verdes?
A Esfinge teve dó:
— Calma — disse ele, jocoso, enquanto o amigo do meu amigo recuperava as cores —, estava a brincar. Os papéis não têm de ser verdes. Podem ser brancos desde que assinados pelo segundo rei da primeira dinastia sueca.
El otro lo interrumpió con su voz de abismo, helénica, en ese tono de quien pide disculpas:
—Es muy simple: tiene que traerme una copia de su documento de identidad firmado y autentificado por escribano, un alcatraz de patas azules autografiado por Darwin y su credencial cívica. Además debe traer una prueba inequívoca de la existencia de Dios sin referencia alguna a santo Tomás de Aquino, así como una declaración de impuestos del ejercicio pasado y un elefante asiático. Evidentemente, todos los papeles deberán ser verdes.
El amigo de mi amigo quedó lívido al notar que allí, justo delante de él, se encontraba lo absurdo de la existencia. ¿Y quién diría que lo absurdo de la existencia usaba camisa a cuadros y lentes de armazón grueso?
El amigo de mi amigo preguntó:
—¿Cómo que verdes?
La Esfinge tuvo compasión:
—Calma —le dijo, jocoso, mientras el amigo de mi amigo recuperaba el color—, era una broma. Los papeles no tienen que ser verdes. Pueden ser blancos siempre que estén firmados por el segundo rey de la primera dinastía sueca.
Eu próprio entrei nessa mesma repartição num dia de coragem. O prédio fica numa rua paralela à antiga casa dos meus pais, entre o período Câmbrico e o Paleolítico Superior, mesmo numa esquina. Lá dentro, junto a um balcão, é possível ver vários fósseis da era Neoproterozoica, entre eles uma máquina de escrever e um ábaco assírio. Também existem raridades de períodos mais recentes: o elo perdido do darwinismo, por exemplo, está no gabinete à esquerda de quem entra. Felizmente evita atender ao balcão.
A fila era grande, mas eu tinha uma vida inteira pela frente (de qualquer modo levava comigo os papéis para a reforma, não fosse aquilo prolongar-se mais do que esperava). Quando, enfim, chegou a minha vez, respirei fundo e dirigi-me a um funcionário que me lançou um olhar tão burocrático que quase lhe estendi o meu cartão de contribuinte e uma requisição do médico antes que ele me pedisse qualquer coisa. Senti o horror no corpo. Ele interpelou-me despejando um rol de coisas necessárias e eu reagi sem temperança, mas em legítima defesa:
—Vocês representam o que de pior há na sociedade, seus burocratas! — gritei. — Mentira! Nós aqui nunca representamos. Somos genuínos — contra-atacou ele, calmamente, com o seu porte de dossier dos anos setenta. — Não passam de uma invenção de Kafka — continuei, ameaçando-o com o meu colar de alhos. — Um produto do Império Austro-Húngaro. — Ha, ha, ha! — riu o monstro. — Isso é uma superstição tola que pretende colmatar a ignorância humana, uma teoria infantil que aspira explicar todas aquelas coisas que a humanidade não entende. Kafka nem sequer é considerado um dos nossos profetas.
Incluso yo entré a esa misma oficina un día armado de coraje. El edificio queda en una calle paralela a la antigua casa de mis padres, entre el período cámbrico y el paleolítico superior, exactamente en una esquina. Allí adentro, al lado de un mostrador, se pueden ver varios fósiles de la era neoproterozoica, entre ellos una máquina de escribir y un ábaco asirio. También hay rarezas de períodos más recientes: el eslabón perdido del darwinismo, por ejemplo, está en el despacho a la izquierda de quien entra. Por suerte, evita atender el mostrador.
La cola era larga, pero yo tenía toda una vida por delante (de cualquier modo, llevaba conmigo los papeles para la reforma, no fuera a ser que aquello se prolongara más de lo que esperaba). Cuando, finalmente, llegó mi turno, respiré hondo y me dirigí a un funcionario que me clavó una mirada tan burocrática que casi le doy mi certificado de contribuyente y una orden del médico antes de que me pidiera algo. El terror se apoderó de mi cuerpo. Él me interrumpió lanzándome una lista de cosas necesarias y yo reaccioné sin templanza, pero en legítima defensa:
—Ustedes representan lo peor que hay en la sociedad, ¡burócratas! —grité.
—¡Mentira! Nosotros nunca representamos. Somos genuinos —contraatacó él, tranquilamente, con su porte de dossier de los años setenta. —No son más que una invención de Kafka —proseguí, amenazándolo con mi collar de ajos—. Un producto del Imperio austrohúngaro. —¡Ja, ja, ja! —se rio el monstruo—. Eso es una superstición tonta que pretende colmatar la ignorancia humana, una teoría infantil que aspira a explicar todo aquello que la humanidad no entiende. Kafka ni siquiera es considerado uno de nuestros profetas.
A verdade é que a primeira repartição nasceu em Minos, foi uma criação de Dédalo. Julgava, a senhora, que o labirinto de Creta tinha voltas sobre voltas, voltas e mais voltas, julgava que era uma coisa imensa em forma de intestinos? Não seja ridícula. Eram apenas alguns arquivos, carimbos e um balcão. Veja a genialidade dos gregos antigos! Um labirinto com menos de vinte metros quadrados e apenas um funcionário.
O homem calou-se enquanto fingia arquivar uma folha. Depois olhou-me com a sua voz tímida e vociferou com aqueles olhos de tempo perdido:
— Somos engraçados.
— Como assim?
—É o que as pessoas nos dizem quando, educadamente, referimos a necessidade primária de adquirir certo papel-para-ter-outro-papel-que-por-sua-vez-precisa-de-outro-papel-e-respectivo-selo (e isto ad infinitum). Dizem as pessoas, ao ouvir isto, que somos uma anedota. Nós, cara senhora, fazemos rir. Temos sentido de humor.
La verdad es que la primera oficina pública nació en Minos, fue una creación de Dédalo. ¿Creía usted que el laberinto de Creta tenía vueltas sobre vueltas, vueltas y más vueltas, creía que era una cosa inmensa en forma de intestinos? No sea ridícula. Eran solamente algunos archivos, sellos y un mostrador. ¡Mire la genialidad de los antiguos griegos! Un laberinto con menos de veinte metros cuadrados y solamente un funcionario.
El hombre se calló mientras fingía archivar una hoja. Después me miró con su voz tímida y vociferó con aquellos ojos de tiempo perdido:
—Somos graciosos.
—¿Cómo?
—Es lo que las personas nos dicen cuando, educadamente, comentamos la necesidad primaria de adquirir cierto papel-para-tener-otro-papel-que-a-su-vez-necesita-otro-papel-y-su-respectivo-sello (y esto ad infinitum). Dicen las personas, al oír esto, que somos un chiste. Nosotros, querida señora, hacemos reír. Tenemos sentido del humor.
— Isso só pode ser piada.
— Viu?
(Agnese Guzman, Comédias Modernas)
—Esto solo puede ser una broma.
—¿Vio?
(Agnese Guzman, Comédias Modernas.)
Traducción de María Noel Melgar y Verónica Machado.