7º A luz é intensa aqui no sétimo círculo. Ponho o chapéu de palhinha com abas, com uma fita pre...
A luz é intensa aqui no sétimo círculo. Ponho o chapéu de palhinha com abas, com uma fita preta, que me foi fornecido à entrada. Agora vejo melhor a paisagem, as espreguiçadeiras, os anjos, Deus, os outros habitantes da Eternidade. Nunca pensei que houvesse espreguiçadeiras no Paraíso, um móvel tão amigo de um dos pecados mortais. Tapo os olhos por causa da luz. É demais, é muita luz, e deveria haver um botão para baixar, para dar penumbra, como quando baixo os estores nas tardes de agosto. Imaginava o Paraíso com estores. Espero que haja uma noite para aliviar este dia tão luminoso.
As grades parecem seguras, pintadas de azul, que vai bem com o céu. Mas tenho de reclamar. Onde é que está o meu marido? À minha frente surge um anjo, todo vestido de branco. Quase que ergo a mão para lhe tocar a face, tão jovem, tão bonita, tão cheia de luz. Em vez disso, sai-me uma pergunta seca: onde é que está o meu marido? O anjo fica sem saber o que dizer. Digo-lhe que não me interessa que possam ter achado que o meu marido não era uma boa pessoa, que ele não era pessoa de vir para o Céu. A verdade é que se eu vou para o Paraíso, se o mereço, tenho de ter o meu marido comigo. Que raio de coisa é esta em que passamos a eternidade separados das pessoas que amamos?
La luz es intensa aquí en el séptimo círculo. Me pongo el sombrero de paja con ala, con una cintita negra, que me entregaron en la entrada. Ahora veo mejor el paisaje, los perezosos, los ángeles, Dios, los otros habitantes de la Eternidad. Nunca pensé que habría perezosos en el Paraíso, un mueble tan amigo de uno de los pecados mortales. Me tapo los ojos por la luz. Es demasiada, es mucha luz, y debería haber un botón para bajarla, para dar penumbra, como cuando bajo las persianas en las tardes de agosto. Me imaginaba el Paraíso con persianas. Espero que haya una noche para aliviar este día tan luminoso.
Las rejas parecen seguras, pintadas de azul, que va bien con el cielo. Pero debo protestar. ¿Dónde está mi marido? Frente a mí aparece un ángel, todo vestido de blanco. Casi que estiro la mano para tocarle la cara, tan joven, tan bonita, tan llena de luz. En vez de eso, me sale una pregunta seca: ¿dónde está mi marido? El ángel se queda sin saber qué decir. Le digo que no me interesa que puedan haberse dado cuenta de que mi marido no era una buena persona, que no era una persona para venir al Cielo. La verdad es que si yo voy al Paraíso, si lo merezco, tengo que tener a mi marido conmigo. ¿Qué rayos es esto de pasar la eternidad separados de las personas que amamos?
O anjo diz para me acalmar, mas eu não posso aceitar uma coisa destas. Têm muita luz, mas esquecem-se de quem amamos! O meu marido podia ser mau, mas se amamos pessoas assim o que é que devemos fazer? Viver eternamente sem elas? Que porcaria de paraíso é este? O anjo encolhe os ombros. Nunca pensei que os anjos os encolhessem, aliás, nunca pensei que tivessem ombros.
As camas brancas sucedem-se. A brancura agrada-me, é sinal de higiene. Há um homem a olhar para mim e tem bigode. Esta é outra coisa que eu não esperava encontrar. Para quê estes pelos? Será que temos de os cortar ou ficam sempre do mesmo tamanho? É difícil dizer. Acho que ainda não passou um dia, mas quem é que pode garantir tal coisa? O tempo deve passar de maneira diferente por aqui. Se calhar passou uma eternidade. O tempo é muito relativo e eu sei muito bem o que isso é. Tive um tio que, quando abria a boca para falar, parecia que nunca mais se iria calar, parecia uma eternidade. Há uma jarra em cima da mesa e vários anjos. Digo-lhes que se o meu marido não está aqui, que se não é bom o suficiente para estar aqui, então eu prefiro ir para o Inferno. Pelo menos estaremos juntos. Tentam dissuadir-me, mas eu não vou desistir. Agarram em mim e levam-me para um quarto. Sentam-me na cama e falam-me com voz doce. Fazem com que me deite, trazem-me um copo de água e eu, passados minutos, sinto vontade de dormir. Acordo de noite (afinal há noites no Paraíso) e tento acender um candeeiro, mas só dá escuro. Tenho de chegar ao Inferno, penso, tenho de chegar ao Inferno.
El ángel dice que me calme, pero yo no puedo aceptar algo así. Tienen mucha luz, pero se olvidan de quien amamos. Mi marido podía ser malo, pero si amamos a personas así, ¿qué es lo que debemos hacer? ¿Vivir eternamente sin ellas? ¿Qué porquería de paraíso es este? El ángel se encoge de hombros. Nunca pensé que los ángeles se encogieran de hombros, de hecho, nunca pensé que los tuvieran.
Las camas blancas se suceden unas a otras. La blancura me agrada, es señal de higiene. Hay un hombre que me mira y tiene bigote. Esta es otra cosa que no esperaba encontrar. ¿Para qué estos pelos? ¿Nos los tendremos que cortar o siempre están del mismo tamaño? Es difícil decir. Creo que todavía no pasó un día, pero ¿quién puede garantizar tal cosa? El tiempo debe pasar de manera diferente por aquí. Tal vez haya pasado una eternidad. El tiempo es muy relativo y yo sé muy bien lo que es eso. Tuve un tío que, cuando abría la boca para hablar, parecía que nunca más se callaría, parecía una eternidad. Hay una jarra encima de la mesa y varios ángeles. Les digo que si mi marido no está aquí, que si no es lo suficientemente bueno para estar aquí, entonces prefiero ir al Infierno. Por lo menos estaremos juntos. Intentan disuadirme, pero no voy a desistir. Me agarran y me llevan para un cuarto. Me sientan en la cama y me hablan con voz dulce. Hacen que me acueste, me traen un vaso de agua y, después de algunos minutos, me dan ganas de dormir. Me despierto de noche (al final hay noches en el Paraíso) y trato de prender un candil, pero no da más que oscuridad. Tengo que llegar al Infierno, pienso, tengo que llegar al Infierno.
Estou no sexto círculo e iniciei a minha viagem para o Inferno. Começo a lembrar-me de coisas, recordações, idas à praia. Como eu gostava de ir à praia, da areia, do sol a derreter-me o corpo. O meu marido não gostava. Ficava deitado na toalha a beber cerveja e a ler o jornal desportivo, enquanto eu caminhava até à beira de água. Então — porque nunca aprendi a nadar, a única coisa que sabia era ir ao fundo — baixava-me, sentava-me na areia, para que as ondas me molhassem o peito, a cara, o cabelo. Depois levantava-me e via tudo desfocado, esfregava os olhos com as mãos, ficava com eles a arder e cheios de areia, e voltava-me para ver se o meu marido estava a olhar para mim. Parecia que jamais o fazia, mas nunca tive a certeza, pois apesar de ele, quando me voltava, estar sempre a olhar para outro lado qualquer, nada me garante que, quando estava de costas, a banhar-me, ele não estivesse a olhar para mim. Aliás, tenho a certeza de que estava a olhar para mim. Provavel- mente disfarçava por vergonha. Lembro-me dos meus dedos todos enrugados de estarem dentro de água, pareciam ameixas secas, e eu gostava de os mostrar ao meu marido. Corria para ele com as mãos esticadas e mostrava a polpa dos dedos, todos encarquilhados.
Estoy en el sexto círculo y comencé mi viaje hacia el Infierno. Empiezo a acordarme de cosas, recuerdos, idas a la playa. Cómo me gustaba ir a la playa, la arena, el sol derritiéndome el cuerpo. A mi marido no le gustaba. Se quedaba acostado en la toalla tomando cerveza y leyendo el suplemento deportivo, mientras yo caminaba hasta la orilla. Entonces —como nunca aprendí a nadar, lo único que sabía hacer era irme al fondo— me agachaba, me sentaba en la arena, para que las olas me mojaran el pecho, la cara, el pelo. Después me levantaba y veía todo borroso, me refregaba los ojos con las manos, me quedaban ardiendo y llenos de arena, y me daba vuelta para ver si mi marido me estaba mirando. Parecía que jamás lo hacía, pero nunca tuve la certeza, pues a pesar de que, cuando me daba vuelta, él siempre estaba mirando para cualquier otro lado, nada me asegura que, cuando yo estaba de espaldas, bañándome, él no estuviera mirándome. Es más, estoy segura de que me estaba mirando. Probablemente disimulaba por vergüenza. Me acuerdo de mis dedos todos arrugados de tanto estar en el agua, parecían pasas de uva, y me gustaba mostrárselos a mi marido. Corría hacia él con las manos estiradas y le mostraba la yema de los dedos, todos fruncidos.
O meu marido encolhia os ombros e dizia para eu o deixar em paz. Tinha razão, sempre fui muito infantil. Não é fácil ser-se uma criança tão velha como eu sou. Muitas vezes quero dançar e as minhas pernas apenas tremem, não concordam com o que eu quero e isso deixa-me triste. Insulto as minhas pernas e digo-lhes que ficaram velhas e já não sabem viver a vida, por isso, para lhes mostrar como se pode ser feliz, danço realmente, mas sem mexer as pernas, só balançando os braços. E quando estes se cansam, danço só com a imaginação e então dou pulos muito grandes e, nessa altura, ninguém me repreende, nem sequer o meu marido que continua a ler o jornal desportivo.
Tenho comichão nas costas. Que coisa estranha, pois como é que se coça as costas? No Paraíso não deveria haver costas se não chegamos lá com as mãos. Começo a ter demasiadas reclamações a fazer. Que o mundo não fosse perfeito, compreende-se, mas um paraíso assim é inaceitável. Talvez deva pedir aos anjos que me cocem as costas, mas não vejo nenhum. Dizem que os anjos não têm costas, o que faz todo o sentido.
Mi marido se encogía de hombros y me decía que lo dejara en paz. Tenía razón, siempre fui muy infantil. No es fácil ser una niña tan vieja como soy yo. Muchas veces quiero bailar y mis piernas solo tiemblan, no coordinan con lo que quiero y eso me pone triste. Insulto a mis piernas y les digo que están viejas y que ya no saben vivir la vida, por eso, para mostrarles cómo se puede ser feliz, bailo de veras, pero sin mover las piernas, solo balanceando los brazos. Y cuando estos se cansan, bailo solo con la imaginación y entonces doy saltos muy grandes y, a esa altura, nadie me rezonga, ni siquiera mi marido, que continúa leyendo el suplemento deportivo.
Me pica la espalda. Qué cosa más rara, pues ¿cómo es que se rasca la espalda? En el Paraíso no debería haber espaldas si no llegamos allí con las manos. Empiezo a tener demasiadas quejas para hacer. Que el mundo no fuera perfecto, se comprende, pero un paraíso así es inaceptable. Tal vez le deba pedir a los ángeles que me rasquen la espalda, pero no veo ninguno. Dicen que los ángeles no tienen espalda, lo que tiene mucho sentido.
Se calhar eu também não tenho e a comichão que sinto é como a daqueles sujeitos amputados, soldados e isso, que continuam a sentir dor na perna que lhes foi serrada para impedir que a gangrena alastrasse. É um inferno muito grande ter comichão numa zona do corpo que já não possuímos. É o mesmo que ir às compras sem levar a carteira.
Pois é, tenho a certeza de que não tenho costas. Se alguém chegasse ao pé de mim e me tocasse, não me acertava no corpo, mas sim na alma. Se me dessem uma palmada no ombro, acertavam-me no coração. É tudo profundo, não há coisas superficiais, como montras e centros comerciais. Quando tento coçar a garganta, começo a coçar as palavras e fico com a voz rouca.
Os meus pés estão engelhados. Deve ser apenas uma impressão. É como se tivesse ficado muito tempo no banho, como quando ia à praia e o meu marido fingia não olhar para mim. Tenho sempre muito medo de sair da banheira, escorregar e partir a cabeça do fémur e ter de ficar estendida numa cama a recuperar, e ficar meses assim, sem poder espirrar, senão o osso não recupera. E eu que sou alérgica, especialmente na primavera. Os pólenes baralham-me o nariz.
Tal vez yo tampoco tenga y la picazón que siento es como la de aquellos sujetos amputados, soldados y eso, que siguen sintiendo dolor en la pierna mutilada para impedir que la gangrena se extienda. Es un infierno muy grande tener picazón en una zona del cuerpo que ya no tenemos. Es lo mismo que ir de compras sin llevar la billetera.
Pues sí, estoy segura de que no tengo espalda. Si alguien se acercara a mí y me tocara, no me daría en el cuerpo, sino en el alma. Si me dieran una palmada en el hombro, me darían en el corazón. Es todo profundo, no hay cosas superficiales, como vidrieras y centros comerciales. Cuando trato de rascarme la garganta, empiezo a rascar las palabras y quedo con la voz ronca.
Mis pies están ajados. Debe ser solo una impresión. Es como si hubiera estado mucho tiempo en el agua, como cuando iba a la playa y mi marido fingía no mirarme. Siempre tengo mucho miedo de salir de la bañera, resbalarme y partirme la cabeza del fémur y tener que quedarme tirada en una cama para recuperarme, y estar meses así, sin poder estornudar, si no el hueso no se recupera. Y yo que soy alérgica, especialmente en la primavera. El polen me alborota la nariz.
Que coisa: por causa das flores não vou conseguir recuperar o osso da perna. Paciência, também não devo precisar dele, deve haver maneira de andar a voar. Tinha um amigo que dizia que viajava com a imaginação. A minha imaginação está um bocadinho velha, como se tivesse ficado demasiado tempo no banho, mas acho que ainda dá para viagens curtas, voar de um pensamento para outro.
Sim, a cabeça funciona bem. Passo por lugares do meu passado com muita rapidez, como se corresse num campo verde. Vejo o meu gato Van Gogh, que é muito peludo, e eu sou alérgica aos animais, não é só aos pólenes, por isso, não lhe mexo, mas passo os olhos por cima dele, que tem o mesmo efeito que passar as mãos, e ele ronrona e sente o meu olhar como se fossem os meus dedos. Gosto muito do Van Gogh, que é um gato de pernas curtas e cauda comprida. Não tem uma orelha por causa de um cão. Caça ratos e pombos e por vezes ficamos com o alpendre cheio de penas e de animais mortos. É muito bom caçador e eu digo-lhe isso mesmo, pois é muito triste quando fazemos alguma coisa bem e ninguém repara. Eu sempre fui boa a recortar palavras, mas a minha mãe e o meu pai nunca repararam nisso, e diziam que eu tinha de aprender a cozinhar e a ser uma mulher e a ser trabalhadeira.
Qué cosa: por culpa de las flores no voy a poder recuperar el hueso de la pierna. Paciencia, tampoco debo precisarlo, debe haber una manera de caminar volando. Tenía un amigo que decía que viajaba con la imaginación. Mi imaginación está un tantito vieja, como si hubiera pasado demasiado tiempo en el agua, pero creo que todavía da para viajes cortos, volar de un pensamiento a otro.
Sí, la cabeza funciona bien. Paso por lugares de mi pasado con mucha rapidez, como si corriera en un campo verde. Veo a mi gato Van Gogh, que es muy peludo, y yo soy alérgica a los animales, no solo al polen, por eso, no lo toco, pero paso mis ojos sobre él, lo que tiene el mismo efecto que pasar las manos, y él ronronea y siente mi mirada como si fueran mis dedos. Yo lo quiero mucho a Van Gogh, que es un gato de piernas cortas y cola larga. Por culpa de un perro, le falta una oreja. Caza ratones y palomas y a veces el alero nos queda lleno de plumas y de animales muertos. Es muy buen cazador y yo le digo eso mismo, porque es muy triste cuando hacemos algo bien y nadie se da cuenta. Yo siempre fui buena recortando palabras, pero mi madre y mi padre nunca se dieron cuenta de eso, y decían que yo tenía que aprender a cocinar y a ser mujer y a ser trabajadora.
Foi o que eu fiz, mas era melhor com as palavras do que a ser mulher ou a estrelar ovos. Raramente saíam da frigideira com a gema inteira. Por vezes, o meu marido pedia-me ovos estrelados e eu cozia arroz de ervilhas. Ele ficava aborrecido, mas era melhor assim do que rebentar a gema.
A primeira vez que eu e o meu marido fizemos amor foi numa caravana que ele tinha comprado em segunda mão, toda branca com gaivotas azuis. Não eram gaivotas verdadeiras, eram autocolantes e não voavam, apesar de terem as asas abertas. A caravana tinha uma mesa que fazia de sala e tecidos azuis e vermelhos. O meu marido — que na altura em que tinha comprado a caravana com gaivotas azuis ainda não era meu marido — deu-me um estalo porque eu não queria fazer umas coisas com a boca. Foi bem feito, eu era muito burra, era como uma criança e ele era uma pessoa muito sábia e experimentada que tinha andado embarcada e tinha visto o mundo. Fiquei muito mais mulher depois daquela tarde. Sonhei com flores que haviam sido usadas nos cabelos de bailarinas e com vestidos compridos por estrear.
Fue lo que hice, pero era mejor con las palabras que siendo mujer o fritando huevos. Raramente salían del sartén con la yema entera. A veces, mi marido me pedía huevos fritos y yo cocinaba arroz con arvejas. Él se enojaba, pero era mejor eso que romper la yema.
La primera vez que mi marido y yo hicimos el amor fue en una casa rodante que él había comprado de segunda mano, toda blanca con gaviotas azules. No eran gaviotas de verdad, eran pegotines y no volaban, a pesar de tener las alas abiertas. La casa rodante tenía una mesa que hacía de sala y tapizados azules y rojos. Mi marido —que en el momento en que compró la casa rodante con gaviotas azules todavía no era mi marido— me dio un sopapo porque yo no quería hacer unas cosas con la boca. Estuvo bien, yo era muy boba, era como una niña y él era una persona muy sabia y con experiencia que había estado embarcada y había visto el mundo. Me volví mucho más mujer después de aquella tarde. Soñé con flores que habían sido usadas en cabellos de bailarinas y con vestidos largos a estrenar.
Sonhei com raparigas descalças que corriam para dentro delas mesmas e desapareciam para sempre. Nessa altura, sonhava muitas coisas e, nos meus sonhos, havia sempre animais a correrem pelas flores como se fossem abelhas, e havia alfaiates que morriam de febre-amarela, e havia arquitetos de pirâmides egípcias que eram construídas com pedra-sabão.
Uma vez vesti-me de branco, como a caravana, e acabei por sujar o vestido, pois o branco atrai muitas nódoas. Foi no dia em que me casei. O branco também atrai maridos e as nódoas são como os pássaros, andam a voar à nossa volta e poisam em roupas lavadas.
Estou a descer rapidamente para o Inferno. Consigo sentir o calor a encher me as bochechas, a cara toda. Dantes sabia ver as horas sem olhar para o relógio e nunca falhava por mais de um ou dois minutos.
O meu marido foi um homem que, a certa altura da vida, começou a juntar anos. Em vez de os viver, juntava-os. Viveu muito tempo, mas sem noção disso. O meu marido já estava tão velho que já não envelhecia, apenas apodrecia.
Soñé con muchachas descalzas que corrían hacia adentro de ellas mismas y desaparecían para siempre. En aquel entonces, soñaba muchas cosas y, en mis sueños, siempre había animales que corrían entre las flores como si fueran abejas, y había avocetas que morían de fiebre amarilla, y había arquitectos de pirámides egipcias que eran construidas con piedra de jabón.
Una vez me vestí de blanco, como la casa rodante, y terminé ensuciando el vestido, pues el blanco atrae bastantes manchas. Fue el día en que me casé. El blanco también atrae maridos y las manchas son como los pájaros, andan volando a nuestro alrededor y se posan en la ropa lavada.
Estoy bajando rápidamente hacia el Infierno. Puedo sentir el calor que corre por mis mejillas, por toda la cara. Antes sabía ver las horas sin mirar el reloj y nunca le erraba por más de uno o dos minutos.
Mi marido fue un hombre que, en determinado momento de la vida, comenzó a juntar años. En vez de vivirlos, los juntaba. Vivió mucho tiempo, pero sin noción de eso. Mi marido ya estaba tan viejo que ya no envejecía, solo se pudría.
Eu gostava muito dele e não sou capaz de viver eternamente sem o ter a meu lado eternamente. Os desenhos recortam-se com tesouras. A alma recorta-se com palavras. Eu sempre fiz isso muito bem, é como cortar as unhas. Sempre fui muito boa nisso. Há pessoas que sabem saltar ao eixo muito bem e outras que sabem mexer o café com as duas mãos — às vezes com a esquerda, outras vezes com a direita — e outras que sabem fazer contas e dançar ao mesmo tempo. Eu sou boa a recortar palavras. Cada um é para o que nasce e eu com as palavras é como cortar as unhas, mesmo rente à carne. Quando era nova usava sandálias e as unhas pintadas. Quando somos novos somos eternos e, em vez de envelhecermos, crescemos. Depois é que começamos a, em vez de crescer, envelhecer. Então deixamos de durar para sempre e começamos a ser avós e a gostar de flores e a andar muito devagarinho e a ter dificuldade em dobrar as costas. O que é uma pena, pois, como gostamos mais de flores, temos uma grande tendência para as apanhar e pô-las em jarras com água em cima da cómoda e na mesa da sala. Fica tudo perfumado, tudo florido e cheio de cores. As visitas gostam muito e elogiam. Eu agradeço os elogios e digo: mas olhe que, senhora Guzman, faz mal às costas.
Yo lo quería mucho y no soy capaz de vivir eternamente sin tenerlo a mi lado eternamente. Los dibujos se recortan con tijeras. El alma se recorta con palabras. Siempre hice eso muy bien, es como cortarse las uñas. Siempre fui muy buena en eso. Hay personas que saben saltar el rango muy bien y otras que saben batir el café con las dos manos —a veces con la izquierda, otras veces con la derecha— y otras que saben hacer cuentas y bailar al mismo tiempo. Yo soy buena recortando palabras. Cada uno es para lo que nace y yo con las palabras soy como cortándome las uñas, incluso contra la carne. Cuando era joven usaba sandalias y las uñas pintadas. Cuando somos jóvenes somos eternos y, en vez de envejecer, crecemos. Después es que empezamos a, en vez de crecer, envejecer. Entonces dejamos de durar para siempre y empezamos a ser abuelos y a gustar de las flores y a caminar muy despacito y a tener dificultad para doblar la espalda. Lo que es una pena, porque como nos gustan más las flores, tenemos una gran tendencia a agarrarlas y ponerlas en jarrones con agua encima de la cómoda y de la mesa de la sala. Queda todo perfumado, todo florido y lleno de colores. A las visitas eso les gusta mucho y lo elogian. Yo agradezco los elogios y digo: pero mire, señora Guzman, que hace mal para la espalda.
O cabelo não cai só aos homens e às árvores no outono, também cai às mulheres, e eu já não tenho muito. Ultimamente, sempre que me vejo ao espelho, consigo ver a curva da cabeça.
Quando esfrego os olhos, são muitos séculos de olhar que estou a esfregar. Porque uma pessoa não tem só o seu passado, tem também os passados de todos os seus familiares, dos seus amigos, das histórias que leu ou que ouviu. Não é? Quando esfregamos os olhos, esfregamos muitos séculos.
Um dia, o meu marido acordou sem conseguir pronunciar palavras, apenas o sinal de interrompido do telefone. Abria a boca e saía um som de máquina. Dei-lhe um beijo e aquilo passou-lhe, mas foi muito esquisito e eu, quando tinha saudades dele quando ele estava fora muitos dias, levantava o auscultador e esperava até ouvir o sinal de interrompido.
Eu costumava dizer ao meu marido que as minhas palavras ficavam mesmo rente à carne. Dizia-lhe que era como cortar as unhas. Às vezes apontava para algumas palavras que via à minha volta. Ele ficava muito irritado quando eu fazia isso. É que eu sempre consegui ver e ouvir certas palavras que ficam nas salas e nos quartos das casas. Entro numa assoalhada e ouço palavras antigas que foram pronunciadas há um ano ou há uma semana ou há menos tempo. Há palavras que se dizem que nunca mais se apagam.
El pelo no se les cae solo a los hombres y a los árboles en el otoño, también se les cae a las mujeres, y yo ya no tengo mucho. Últimamente, siempre que me miro en el espejo, llego a verme la curva de la cabeza.
Cuando me refriego los ojos, son muchos siglos de miradas que estoy refregando. Porque una persona no tiene solo su pasado, también tiene los pasados de todos sus familiares, de sus amigos, de las historias que leyó o que oyó. ¿No? Cuando nos refregamos los ojos, refregamos muchos siglos.
Un día, mi marido se despertó sin poder pronunciar palabras, solo el tono de fuera de servicio del teléfono. Abría la boca y salía un sonido de máquina. Le di un beso y se le pasó, pero fue muy raro y yo, cuando él estaba afuera por muchos días y lo extrañaba, levantaba el tubo del teléfono y esperaba hasta oír el tono de fuera de servicio.
Solía decirle a mi marido que mis palabras quedaban justo contra la carne. Le decía que era como cortarse las uñas. A veces le mostraba algunas palabras que veía a mi alrededor. Él se irritaba mucho cuando yo hacía eso. Es que yo siempre pude ver y oír ciertas palabras que quedan en las salas y cuartos de las casas. Entro en una habitación y oigo palabras viejas que fueron pronunciadas hace un año o hace una semana o hace menos tiempo. Hay palabras que se dicen que nunca más se borran.
Quando era nova, pensei que deveria substituir os fins por recomeços para não ter muita coisa para enterrar. Depois, quando envelheci, pensei que talvez devesse passar mais tempo a enterrar coisas. Funciona com as dálias e com as margaridas. Enterramos sementes e aquilo cresce em direção ao sol. Os corpos sem luz têm vontade de se exibir e de crescerem pelo céu acima como se subissem escadas. Enterramos coisas e elas crescem, aparecem, engordam, ficam verdes. É um bom exercício e foi algo que fiz com frequência: enterrar-me no jardim. O meu marido detestava que o fizesse, mas aquilo dava-me vontade de viver e eu saía da terra como as dálias e as margaridas, cheia de pétalas e cheia de cores. Enfiava-me a preto e branco e saía como se fosse felicidade. Depois passava muito tempo a limpar a roupa e, por três vezes, apanhei carraças. Tive de as tirar com um jornal a arder e eu detesto queimar as notícias. Dizem que não prestam, mas eu sinto que são importantes e informam-nos que a nossa vida está sempre a caminhar para o abismo e que não há nada a fazer senão continuar a votar nas pessoas erradas, que é para isso que serve a democracia, segundo me é dado perceber.
Estou toda nua e sinto-me mais nova. A proximidade ao Inferno tem efeitos benéficos na pele. Ouço barulho de automóveis e isso diz-nos alguma coisa sobre...
Cuando era joven pensé que debería sustituir los finales por recomienzos para no tener mucha cosa que enterrar. Después, cuando envejecí, pensé que tal vez debiera pasar más tiempo enterrando cosas. Funciona con las dalias y con las margaritas. Enterramos semillas y aquello crece en dirección al sol. Los cuerpos sin luz tienen ganas de exhibirse y de crecer cielo arriba como si subieran escaleras. Enterramos cosas y estas crecen, aparecen, engordan, se ponen verdes. Es un buen ejercicio y fue algo que hice con frecuencia: enterrarme en el jardín. Mi marido detestaba que lo hiciera, pero eso me daba ganas de vivir y salía de la tierra como las dalias y las margaritas, llena de pétalos y llena de colores. Me metía en blanco y negro y salía como si fuera felicidad. Después pasaba mucho tiempo lavando la ropa y, tres veces, me agarré garrapatas. Tuve que sacármelas con un diario prendido fuego y yo detesto quemar las noticias. Dicen que no sirven para nada, pero yo siento que son importantes y nos informan que nuestra vida está siempre caminando en dirección al abismo y que no hay nada que se pueda hacer más que seguir votando a las personas equivocadas, que es para lo que sirve la democracia, según lo que he notado.
Estoy toda desnuda y me siento más joven. La cercanía al Infierno tiene efectos beneficiosos para la piel. Siento ruido de autos y eso nos dice algo sobre…
A minha prima, Ema de Jesus, atirou-se da janela do lar Paraíso — que ocupava o sétimo andar de um prédio do centro —, para onde se havia mudado recentemente, logo a seguir à morte do marido. Todos sentimos algum alívio quando ele morreu após doença prolongada. É um sentimento triste, mas não há que ser hipócrita a respeito disso.
Sempre ouvi dizer que o tempo é muito relativo. Lembro-me de um tio que, quando abria a boca, parecia que nunca mais se iria calar, eram discursos que pareciam durar eternidades. Espero que a queda da minha prima lhe tenha permitido, tal como tenho ouvido dizer que acontece nestas ocasiões, rever a sua vida toda em segundos como se a estivesse a viver de novo. Ou pelo menos relembrar algumas das coisas que lhe foram mais queridas. Acho que oitenta e dois anos cabem perfeitamente dentro de uma queda de sete andares.
O lar Paraíso foi alvo de um processo judicial.
Mi prima, Ema de Jesus, se tiró de la ventana del hogar Paraíso —que ocupaba el séptimo piso de un edificio del centro—, adonde se había mudado recientemente, enseguida después de la muerte de su marido. Todos sentimos un poco de alivio cuando él murió luego de una enfermedad prolongada. Es un sentimiento triste, pero no hay que ser hipócrita con relación a eso.
Siempre escuché decir que el tiempo es muy relativo. Me acuerdo de un tío que, cuando abría la boca, parecía que nunca más se iba a callar, eran discursos que parecían durar eternidades. Espero que la caída de mi prima le haya permitido, tal como he escuchado decir que sucede en estos casos, rever toda su vida en segundos como si la estuviese viviendo de nuevo. O por lo menos recordar algunas de las cosas que más quiso. Creo que ochenta y dos años caben perfectamente dentro de una caída de siete pisos.
El hogar Paraíso fue objeto de un juicio.
Traducción de Mayte Gorrostorrazo y Manuela Pequera.