Vou morrer. Vou morrer e nesta noite sem lua nem estrelas — porque nem a lua nem as estrelas, e talvez nem o próprio...
Vou morrer.
Vou morrer e nesta noite sem lua nem estrelas — porque nem a lua nem as estrelas, e talvez nem o próprio céu, querem ver nosso infortúnio — sonhei com o guia dos descarnados, o Opanokondo. Vinha na minha direção montado no grande pássaro de olhos dourados, asas de fogo e penas vermelhas, para me levar ao Reino dos Espíritos, onde mora o pai Olodumare junto com os antigos deuses.
Eu, Soledad Cruz, a quem os lanceiros das nações africanas — os lubolos, minas, benguelas, quizambes, hauçás, cabindas, malembos e muzumbis — apelidaram com cuidadoso respeito “Mamba”, sei o que significa: vou morrer na batalha, lança na mão, montando minha égua Sumora, gritando até não mais poder, até ficar rouca, investindo contra as tropas do taimado Pancho Ramírez, a quem chamam “o Supremo Entrerriano”, sentindo que meu corpo negro e Sumora somos uma só.
Voy a morir.
Voy a morir y en esta noche sin luna ni estrellas —porque ni la luna ni las estrellas, y acaso ni el mismo cielo, quieren ver nuestro infortunio— he soñado con el guía de los descarnados, el Opanokondo. Venía hacía mí montado en el gran pájaro de ojos dorados, alas de fuego y plumas rojas, para llevarme al Reino de los Espíritus donde mora el padre Olodumare junto con los antiguos dioses.
Yo, Soledad Cruz, a quien los lanceros de las naciones africanas —los lubolos, minas, benguelas, quizambes, auzas, cabindas, malembos y muzumbis— han apodado con cuidadoso respeto «Mamba», sé lo que significa: voy a morir en batalla, lanza en mano, montando mi yegua Sumora, gritando a más no poder, hasta quedar ronca, embistiendo contra las tropas del taimado Pancho Ramírez, a quien llaman «el Supremo Entrerriano», sintiendo que mi cuerpo negro y Sumora somos solo una.
Vou morrer e meus ossos ficarão jogados nesta terra entrerriana, onde, antes da chegada dos cara-pálidas, caminharam orgulhosos os timbus, caletones e beguás, para alimento dos carcarás e das Zingas, a confraria de lanceiras que veneram a esquecida deusa Noubacamoká e, num úmido dia de verão, se colocaram a serviço da Revolução de Maio, e se tornarão uma lembrança, simplesmente uma lembrança, sussurrada por negras velhas em rodas noturnas de fogueiras. Eu conheci Soledad Cruz — dirão, enquanto servem o chimarrão —, sua pele era tão negra como o carvão e seus olhos pareciam brasas ardentes. Eu conheci Soledad Cruz — dirão, enquanto mexem com fruição dentro de uma panela um espesso mofongo —, tinha um corpo pequeno e robusto, e era tão ágil como uma jaguatirica. Eu conheci Soledad Cruz — dirão, enquanto preparam lentamente com mãos trêmulas e esquálidas um cachimbo — e a ouvi entoar, com voz áspera, uma antiga canção africana sobre dois amantes presos pelo Siroco — o sopro abrasador do deserto enviado pelos demônios de Ñangá, “o Inominável”—, que os transformou em esfinges de areia que se abraçam por toda a eternidade. E as negras velhas em rodas noturnas de fogueiras se darão as mãos e começarão a cantar o antigo refrão das mães das mães de suas mães, há incontáveis sóis e luas, quando colhiam frutos na selva para invocar os espíritos protetores…
Voy a morir y mis huesos quedarán tendidos en esta tierra entrerriana, donde antes de la llegada de los carapálidas caminaron orgullosos los timbúes, caletones y beguáes, para alimento de los caranchos y las Zingas, la cofradía de lanceras que veneramos a la olvidada diosa Noubacamoká y un húmedo día de verano nos pusimos al servicio de la Revolución de Mayo, y se volverán un recuerdo, simplemente un recuerdo, susurrado por negras viejas en ruedas nocturnas de fogones. Yo conocí a Soledad Cruz —dirán, mientras ceban mate—, su piel era tan negra como el carbón y sus ojos parecían brasas ardientes. Yo conocí a Soledad Cruz —dirán, mientras revuelven con fruición dentro de una olla un espeso mofongo—, tenía un cuerpo menudo y fornido, y era tan ágil como un gato montés. Yo conocí a Soledad Cruz —dirán, mientras arman lentamente con manos temblorosas y escuálidas un cachimbo— y la oí entonar, con voz rasposa, una antigua canción africana de dos amantes atrapados por el Siroco —el soplo abrasador del desierto enviado por los demonios de Ñangá, «el Innombrable»— que los convirtió en esfinges de arena que se abrazan para toda la eternidad. Y las negras viejas en ruedas nocturnas de fogones se tomarán las manos y comenzarán a cantar el antiguo estribillo de las madres de las madres de sus madres, hace ya incontables soles y lunas, cuando recogían frutos en la selva para invocar los espíritus protectores…
“Aylelolé, / lelolá, / aylololé, / lololá”… Quando essas negras velhas acreditarem ver — precisarem acreditar que veem — como as chamas formam meu rosto... “Aylelolé, / lelolá, / aylololé, / lololá”…, o fogo irá se apagando — como se apagam cedo ou tarde todos os fogos da terra — e meu rosto, o rosto de Soledad Cruz, a quem os lanceiros das nações africanas — os lubolos, minas, benguelas, quizambes, hauçás, cabindas, malembos e muzumbis — apelidaram com cuidadoso respeito “Mamba”, irá se desvanecendo no ar como fumaça… “Aylelolé, / lelolá, / aylololé, / lololá”... e depois não haverá mais nada, mais nada, mais nada...
Nisso me tornarei eu, Soledad Cruz, quando meus ossos ficarem jogados nesta terra entrerriana, transformados em pó, sem que mais ninguém se lembre do meu rosto, minha voz, quem amei ou quem odiei, que alegrias ou pesares me atribularam, quando ri ou quando chorei, quais foram meus anseios, desgostos, angústias, sonhos ou pesadelos...?
Vou morrer.
«Aylelolé, / lelolá, / aylololé, / lololá»… Mientras esas negras viejas creerán ver —necesitarán creer que ven— cómo llamas forman mi rostro… «Aylelolé, / lelolá, / aylololé, / lololá»…, el fuego se irá apagando —como se apagan tarde o temprano todos los fuegos de la tierra— y mi rostro, el rostro de Soledad Cruz, a quien los lanceros de las naciones africanas —los lubolos, minas, benguelas, quizambes, auzas, cabindas, malembos y muzumbis— han apodado con cuidadoso respeto «Mamba», se irá desvaneciendo en el aire como el humo… «Aylelolé, / lelolá, / aylololé, / lololá»… y después no habrá más nada, más nada, más nada…
¿En eso me volveré yo, Soledad Cruz, cuando mis huesos queden tendidos en esta tierra entrerriana, convertidos en polvo, sin que ya nadie recuerde mi rostro, mi voz, a quién amé o a quién odié, qué alegrías o pesares me atribularon, cuándo reí o cuándo lloré, cuáles fueron mis anhelos, desconsuelos, angustias, sueños o pesadillas…?
Voy a morir.
Vou morrer e eu, Soledad Cruz, a lanceira mais feroz das Zingas, a quem o mesmíssimo mulato Encarnación Benítez teme e evita, me pergunto: por que não me surpreendo? Por que nenhuma angústia ou desespero me corrói? Por que Duamín, o espírito dos covardes, não pôde entrar no meu corpo negro para me infundir medo, esse medo que se sua pelos poros da pele e fede a carne podre antes de cada batalha?
Talvez conheça bem a resposta: desde que aderimos à Revolução, a morte, sim, a morte!, nos acompanhou como uma sombra. Tudo começou — se é que realmente começou — quando quatro ou cinco cara-pálidas, segundo me contaram — quais eram seus nomes? será que importa agora? — juraram, à luz de velas e candeeiros, com as armas carregadas e tocando-se os ombros, sobre o chão de tijolo do Cabildo de Buenos Aires, não sei bem o quê sobre esta Revolução.
E me pergunto eu, Soledad Cruz, a quem os lanceiros das nações africanas — os lubolos, minas, benguelas, quizambes, hauçás, cabindas, malembos e muzumbis — apelidaram com cuidadoso respeito “Mamba”, se aqueles cara-pálidas algum dia saberão — se quisessem saber — que o que eles iniciaram em Buenos Aires virou algo que homem, deus ou demônio algum pôde prever. Se esta Revolução que eles começaram é a que desejavam realmente começar ou é outra coisa — uma coisa que não tem nome algum, uma coisa que eles não imaginaram nunca — que acabou devorando a todos nós.
Voy a morir y yo, Soledad Cruz, la lancera más feroz de las Zingas, a quien el mismísimo pardo Encarnación Benítez teme y evita, me pregunto: ¿por qué no me sorprendo?, ¿por qué ninguna angustia o desesperación me corroe?, ¿por qué Duamín, el espíritu de los cobardes, no ha podido ingresar a mi cuerpo negro para infundirme miedo, ese miedo que se suda por los poros de la piel y huele a carne podrida antes de cada batalla?
Acaso conozco bien la respuesta: desde que nos sumamos a la Revolución, la muerte, ¡sí, la muerte!, nos acompañó como una sombra. Todo comenzó —si es que, en realidad, alguna vez comenzó— cuando cuatro o cinco carapálidas, según me han contado —¿cómo eran sus nombres?, ¿importa, ahora, acaso?—, juraron, a la luz de velones y candiles, con las armas cargadas y tocándose los hombros, sobre el piso de ladrillos del Cabildo de Buenos Aires, no sé bien qué cosa sobre esta Revolución.
Y me pregunto yo, Soledad Cruz, a quien los lanceros de las naciones africanas —los lubolos, minas, benguelas, quizambes, auzas, cabindas, malembos y muzumbis— han apodado con cuidadoso respeto «Mamba», si aquellos carapálidas alguna vez sabrán —si lo quisieran saber— que lo que ellos iniciaron en Buenos Aires mudó en algo que hombre, dios o demonio alguno pudo predecir. Si esta Revolución que ellos comenzaron es la que deseaban realmente comenzar o es otra cosa —una cosa que no tiene nombre alguno, una cosa que ellos no imaginaron nunca— que nos terminó devorando a todos.
E me pergunto eu, Soledad Cruz, que vou morrer nesta terra entrerriana, se esses cara-pálidas que juraram, à luz de velas e candeeiros, com as armas carregadas e tocando-se os ombros, sobre o chão de tijolo do Cabildo de Buenos Aires, sabiam o que significava para os escravos e escravas a Revolução de Maio: correntes que se partem, chicotes que caem no chão sem que nenhuma mão de cara-pálida os recolha para empunhá-los novamente, cepos que se quebram, o porão vazio de um navio negreiro.
E me pergunto eu, Soledad Cruz, que sonhei com o Opanokondo, se agora, depois de tantos sóis e luas combatendo sem trégua contra godos, lusos e traidores, não somos tão escravos como éramos antes, porque nesta Revolução, esta Revolução que começou num dia de outono, houve amos — donos e senhores de nossos corpos —, e nunca ouvi nenhuma declaração, nem do Chefe dos Orientais e Protetor dos Povos Livres, que os condenasse.
E me pergunto eu, Soledad Cruz, se nesta Revolução não fomos porventura os negros e negras mais do que libertos e libertas com tempo emprestado, com mais dúvidas que certezas, com mais agonias que alívios, com mais dores que alegrias.
Y me pregunto yo, Soledad Cruz, que voy a morir en esta tierra entrerriana, si esos carapálidas que juraron, a la luz de velones y candiles, con las armas cargadas y tocándose los hombros, sobre el piso de ladrillos del Cabildo de Buenos Aires, sabían qué significaba para los esclavos y esclavas la Revolución de Mayo: cadenas que se rompen, látigos que caen al suelo sin que ninguna mano de carapálida los recoja para volverlos a empuñar, cepos que se quiebran, la bodega vacía de un barco negrero.
Y me pregunto yo, Soledad Cruz, que he soñado con el Opanokondo, si ahora, después de tantos soles y lunas combatiendo sin tregua contra godos, lusos y traidores, no somos tan esclavos como lo éramos antes, porque en esta Revolución, esta Revolución que comenzó un día de otoño, hubo amos —dueños y señores de nuestros cuerpos—, y nunca oí ninguna proclama, ni del Jefe de los Orientales y Protector de los Pueblos Libres, que los condenara.
Y me pregunto yo, Soledad Cruz, si en esta Revolución no hemos sido acaso los negros y negras más que libertos y libertas con tiempo prestado, con más dudas que certezas, con más pesadumbres que alivios, con más dolores que alegrías.
E me pergunto eu, Soledad Cruz, agora que a Revolução se extingue, por que há aqui somente negros, índios e campesinos pobres que seguirão combatendo até as quimbambas? Onde estão os que uma vez foram donos e senhores de nossos corpos, agora que as derrotas se abatem impiedosamente sobre nós até deixar-nos exânimes? Onde estão os vizinhos afortunados? Por acaso suas terras, gados, arcas abarrotadas de patacões, escravos, valem para eles muitíssimo mais que o juramento que fizeram quatro ou cinco cara-pálidas, à luz de velas e candeeiros, com as armas carregadas e tocando-se os ombros, sobre o chão de tijolo do Cabildo de Buenos Aires? Terá compreendido o Chefe dos Orientais e Protetor dos Povos, nestes amargos momentos, quando nos invade a desesperança, onde estão realmente os fiéis, os que nunca claudicam, onde está realmente o coração — o verdadeiro coração, o coração sangrante — da Revolução? E me pergunto eu, Soledad Cruz, se agora nesse mesmo chão de tijolo do Cabildo de Buenos Aires não haverá apenas quatro ou cinco espectros desses mesmos cara-pálidas que, à luz de velas e candeeiros, desarmados e afastados uns dos outros, lançam ao céu um gemido mais lúgubre que o canto das bruxas.
Fragmento do romance La artigueña. La novela de Soledad Cruz
Traduzido por Sebastián Torterola e Graciela Bittencourt.
Y me pregunto yo, Soledad Cruz, ahora cuando la Revolución se extingue, ¿por qué hay aquí solo negros, indios y paisanos pobres que seguiremos combatiendo hasta en las quimbambas?, ¿dónde están los que una vez fueron dueños y señores de nuestros cuerpos, ahora que las derrotas se abaten impiadosamente sobre nosotros hasta dejarnos exánimes?, ¿dónde están los vecinos poseedores de buenas suertes?, ¿acaso sus tierras, ganados, arcones atiborrados de patacones, esclavos, valen para ellos muchísimo más que el juramento que hicieron cuatro o cinco carapálidas, a la luz de velones y candiles, con las armas cargadas y tocándose los hombros, sobre el piso de ladrillos del Cabildo de Buenos Aires? ¿Ha comprendido, acaso, el Jefe de los Orientales y Protector de los Pueblos, en estos amargos momentos, cuando nos abate la desesperanza, dónde están realmente los fieles, los que nunca claudican, dónde está realmente el corazón —el verdadero corazón, el corazón sangrante— de la Revolución? Y me pregunto yo, Soledad Cruz, si ahora en ese mismo piso de ladrillos del Cabildo de Buenos Aires no habrá solamente cuatro o cinco espectros de esos mismos carapálidas que, a la luz de velones y candiles, desarmados y alejados unos de otros, lanzan al cielo un gemido más lúgubre que el canto de las brujas.
Fragmento de la novela inédita La artigueña. La novela de Soledad Cruz.