Preliminares
A tradução é um processo intercultural cujo resultado permite analisar o modo como uma determinada sociedade recebe uma obra, um(a) autor(a), uma literatura, uma cultura diferente da sua. As diversas reflexões sobre a tradução (e suas práticas, abordagens teóricas, recepção) que tiveram como consequência a constituição dos Estudos da Tradução como uma disciplina independente têm se consolidado para pensar a tradução além da transposição semiótica com foco nos processos linguísticos. O ato de traduzir envolve um conjunto complexo de critérios extralinguísticos que se aprofundam em uma dimensão cultural muito mais abrangente: o tradutor assume um papel que ultrapassa o de mediador linguístico, constituindo-se também em mediador cultural entre textos e culturas distintas.
Tomando de empréstimo o título do ensaio Can the subaltern speak? (1988)1, da intelectual indiana Gayatri Spivak, no qual a especialista em crítica literária questiona a real abertura de
espaço para as vozes dos indivíduos cujas culturas e representações são consideradas subalternas e que convivem com a opressão e o silenciamento em contextos patriarcais e pós-coloniais, com a seguinte reflexão pretendemos questionar como a participação do tradutor nas obras incluídas na perspectiva pós-colonial será determinante na (re)produção de um texto que precisa transpor à cultura de chegada muito mais do que aquilo que está registrado graficamente no papel. Em nosso artigo, analisaremos discussões sobre dois termos relacionados ao campo semântico da escravidão africana nas Américas que têm gerado neologismos e adaptações no português brasileiro: escravo(a) e mulata(o), bem como suas traduções ao espanhol. Para tanto, utilizaremos as reflexões de Arrojo (2007) que apontam que o texto de chegada (TC) é uma representação do texto de partida (TP), e quão relevante é o ato interpretativo do tradutor nesse processo.
A tradução intercultural e seus aportes às teorias pós-coloniais
De acordo com Hall (2003b), as diferenças entre a cultura colonizadora e colonizada permanecem profundas, mas estas nunca operam de forma absolutamente binária. O autor descreve essa relação como um movimento que parte da diferença para a différance, de acordo com a concepção do termo cunhado por Jacques Derrida em 1972, o que nos obriga a reler “os binarismos como formas de transculturação, de tradução cultural, destinadas a perturbar para sempre os binarismos culturais do tipo aqui/lá” (p.109).
Notas
1 Utilizaremos como referência a tradução brasileira de 2010.
A différance impede que qualquer sistema se estabilize em uma totalidade inteiramente suturada; as estratégias surgem nos vazios e aporias que constituem espaços potenciais de resistência, intervenção e tradução. O sujeito pós-colonial se transforma em um produto das novas diásporas criado pela migração, e precisa aprender a conviver com, no mínimo, duas identidades, a falar duas línguas culturais, a traduzir e a negociar entre elas, tornando-se, desta forma, um tradutor cultural. No caso específico da tradução como transposição de textos, concordamos com Arrojo (1996) ao afirmar que pensar a différance “[...] tem permitido o abandono de perspectivas cientificistas e do desejo impossível de sistematizar e tornar asséptica a tarefa de traduzir” (p.62), com destaque para o papel do tradutor, peça-chave na recepção de uma obra literária no TC.
Bassnett (1999), pesquisadora das relações entre literatura pós-colonial e tradução intercultural, afirma que a tradução não acontece de forma isolada e sim em um contínuo, não sendo um ato independente, mas parte de um processo de transferência intercultural. O tradutor passa, então, a ser um sujeito que participa de maneira efetiva na transformação e produção de significados, promovendo uma espécie de dupla tradução. Desse modo, podemos considerar a língua materna e a língua estrangeira como complementares, e não antagônicas, ainda mais no caso do português e do espanhol, cujos focos de tradução intercultural e de finalidade dos textos pós-coloniais se relacionam tanto pela proximidade linguística quanto pelas histórias de conquistas de terras e colonização de povos americanos. A tradução de línguas se ocupa, além da transcodificação linguística, da transmissão de elementos culturais.
Para o intelectual Boaventura de Sousa Santos (2009), a tradução cultural tem como tarefa recuperar as experiências cognitivas perdidas pelo epistemicídio massivo das nações do Norte que vigiam as fronteiras dos saberes. Arrojo (1996) chama a atenção para a proximidade dos processos de colonização e de tradução: as características ainda defendidas por estudiosos da tradução que se apoiam em uma ética dominante e que se referem à transparência e ao respeito incondicional ao “original” (poderoso, sagrado) se aproximam aos traços também encontrados na colonização como supremacia ou superioridade do colonizador como pretexto para submeter a cultura e a identidade do colonizado. Nesse caso, há o apagamento da diferença e o destaque para as relações assimétricas com o outro. O tradutor, portanto, deve estar consciente da relevância do texto que está traduzindo:
Imbuidas en diferentes culturas occidentales y no occidentales, esas experiencias usan no solo diferentes lenguas sino también diferentes categorías, universos simbólicos, y aspiraciones para una vida mejor. (SANTOS, 2010, p.57)
Santos (2010) também defende que a tradução opera nos níveis linguístico e cultural e que, através da tradução intercultural, é possível identificar preocupações comuns, enfoques complementares e, também, contradições inultrapassáveis. Por esse motivo, a tradução cultural será uma tarefa desafiadora a filósofos, cientistas sociais, tradutores e pesquisadores do século XXI.
Por exemplo, nas literaturas conhecidas como de minorias, o aspecto intercultural da tradução não é somente necessário e sim indispensável, pois ditas literaturas estão carregadas de fatores políticos, culturais e ideológicos e têm um forte papel social em suas comunidades. Se no TP se reconhece a diversidade de experiências, saberes e práticas existentes nas comunidades culturais, sua correta interpretação e adequada tradução terá como resultado um produto mais conveniente e adequado à proposta inicial. De acordo com Hall (2003a), se a tradução não considerar características peculiares das literaturas de minorias — como o hibridismo cultural do sujeito diaspórico, sua fragmentação e sua constante dúvida entre assimilação ou resistência — o TC será empobrecido drasticamente e seu sentido ficará comprometido. Portanto, é necessária a mediação textual por meio de olhares desconstruídos que conheçam e que respeitem as culturas de chegada e partida, podendo, inclusive, inserir o TC como referência obrigatória nas discussões intelectuais de diferentes nações. A produção literária da nigeriana Chimamanda Adichie é um grande exemplo dos desafios de traduzir temas como o feminismo e a negritude em textos que vêm circulando por todo o mundo como pilares de um debate sobre as violências contra a mulher negra. Embora seja uma mulher negra africana escrevendo em inglês, a tradução que chega à mulher negra brasileira que lê em português ou à mulher negra hispano-americana que lê em espanhol faz com que estas reconheçam as mesmas situações de preconceitos que vivem aquelas por causa da cor da pele. A tradução deve centrar sua atenção em temáticas tão sensíveis como o racismo e as especificidades de um discurso atravessado pelo ódio e pelos rancores de uma situação de colonização e de opressão.
Retomando a noção de que o texto traduzido é como um palimpsesto, Arrojo (1996) afirma que o significado original não é fixo ou estável e depende do contexto em que originalmente ocorre: o texto se apaga, “em cada comunidade cultural e em cada época, para dar lugar a outra escrita (ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do ‘mesmo’ texto.” (p.23-24). A pesquisadora defende a inevitabilidade da interpretação e do viés inscritos em toda a tradução reafirmando o protagonismo do tradutor, que reivindica seu espaço fugindo da inferioridade incômoda e da transparência impossível. Através da conscientização de uma responsabilidade autoral por parte do tradutor, este se torna componente essencial e participante ativo na criação de significados:
Em outras palavras, nossa tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto “original”, mas àquilo que consideramos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos. Além de ser fiel à leitura que fazemos do texto de partida, nossa tradução será fiel também à nossa própria concepção de tradução [...] [e] aos objetivos que se propõe. (ARROJO, 2007, p. 44-45, grifo da autora)
De acordo com a autora, não se deve focar o trabalho na fidelidade ao TP e sim em um projeto de tradução conscientemente delimitado e respeitado ao se levar em consideração o público-alvo e a função da tradução.
No caso da literatura afrodescendente, os tradutores se deparam com um novo desafio com relação às palavras escravo(a) e mulata(o), terminologias relacionadas aos contextos de escravização africana nas Américas.
Novas abordagens para a literatura afrodescendente
No Brasil, da mesma forma que em outras nações latino-americanas, a abolição da escravidão passou por várias etapas até que um(a) negro(a) realmente não estivesse mais em condição de escravo. No início do XIX foi promulgada a Lei do Ventre Livre, princípio jurídico estabelecido por homens brancos, no qual os filhos das mulheres escravizadas passariam a ter os direitos dos indivíduos considerados livres. Mais tarde, começaram as abolições efetivas, atos que não passavam de papéis assinados pelos mesmos homens brancos em situação de poder em tais sociedades, uma liberdade simbólica sem nenhum tipo de projeto político que realizasse uma alteração efetiva das relações estruturais sociais. No país, de acordo com Harkot-de-La-Taille e Santos (2012), a construção discursiva sobre a escravidão supõe o uso do termo escravo como alguém que está em estado permanente, em uma posição fixa, sem mudanças, acomodado psicologicamente, revelando a naturalização da condição de cativo e contribuindo, com seu uso, para a anistia dos agentes do processo histórico de desumanização, despessoalização e de exploração identitária do indivíduo em situação de escravização. Somando-se os fatos de que a abolição foi assinada por uma mulher — a princesa Isabel, durante a ausência
da autoridade maior, seu pai, o Imperador D. Pedro II — e a utilização da voz passiva em construções como “os negros foram libertados pela princesa Isabel”, temos a liberação de escravizados realizada por uma mulher que, em um gesto quase maternal, toma uma decisão e assina um papel: um acontecimento político e social celebrado pelos abolicionistas, mas com pouca ou quase nenhuma relevância para a população negra da época e que continua sendo ensinado nos currículos escolares brasileiros como se, além de todas as apropriações e violências contra os negros, ainda permanecesse a ideia de que eles teriam uma dívida de gratidão pelo gesto de “boa vontade” da princesa. Harkot-de-La-Taille e Santos (2012) se utilizam da hipótese construtivista da língua, a partir da qual a realidade é considerada uma criação discursiva:
[…] uma notícia pontual e isolada será recebida como um acontecimento concreto, porém, quando o relatado é um acontecimento histórico socialmente ancorado, a hipótese construtivista supera a de descrição de uma realidade objetiva, como o tema da escravidão permite elucidar. (s. p.)
O que se propõe, de fato, é uma mudança na utilização do termo escravo por escravizado, alguém que estaria em uma situação que pode ser modificada; essa alteração propõe uma modificação da carga semântica que revela a denúncia do processo de violência subjacente à perda da identidade e que pressupõe a responsabilização e a pressão ao branco,
o responsável por ter colocado o negro em uma situação de escravizado:
Já os usos contemporâneos que têm sido feitos do vocábulo escravizado para se referir à escravidão negra parecem ter como propósito resgatar o contexto e a relação histórico-social referente ao período escravocrata, evocando ressonâncias semânticas do pressuposto de responsabilização e de opressão pelo processo de escravidão2. (Harkot-de-La-Taille e Santos, 2012, s. p.)
No português brasileiro Harkot-de-La-Taille e Santos (2012) identificaram que apenas no dicionário online Caldas Aulete o termo escravizado está registrado em uma nova entrada cujo significado remete a que se escravizou, sofreu escravização, o que demonstra uma nova visão das relações histórico-sociais ocorridas na época da escravidão. A RAE (Real Academia Española), até este momento, não conta com uma entrada para esclavizado; no entanto, embora não esteja registrado no dicionário, é possível encontrá-lo — ainda que de maneira um tanto tímida — em textos que tratam sobre a temática da escravidão.
Outra mudança significativa na terminologia do contexto de escravidão se refere à palavra mulato(a), em especial à versão feminina do termo. Os movimentos negros
brasileiros negam a utilização da palavra por dois motivos: 1) linguístico: derivação de mulus, do latim, atualizado por mula, o animal que surge da cópula de duas raças distintas — o jumento e a égua, termo que, no século XVI, derivou nas Américas para mulato como uma analogia ao caráter mestiço do animal; e 2) cultural: a falsa impressão de democracia racial que há no país, agregado à representação da mulher negra ou mestiça como um corpo hiperssexualizado.
Em 1933 Gilberto Freyre publicou a obra Casa-Grande e Senzala, na qual o antropólogo apostou na ascensão social do mulato, caracterizando-o como fenótipo brasileiro, resultado das relações amigáveis e relaxadas entre brancos e negros, ao contrário do acontecido nos EUA, onde os negros eram segregados. No entanto, a sensação de democracia racial brasileira se desconstrói na medida em que se discute como a população se tornou mestiça — através das violências praticadas por homens brancos senhores de escravizados às mulheres negras escravizadas e das políticas de branqueamento inseridas por governos que valorizavam a estética branca. O discurso de elogio à mestiçagem que eleva o mulato à expressão da brasilidade se desfaz, pois a autorização para uniões extrarraciais tinham como objetivo o “melhoramento” da raça. A partir de novos estudos teóricos, sustenta-se que o mito da democracia racial
2 O termo esclavizado existe, mas como particípio e não como substantivo. Procurando na internet, isoladamente existem alguns movimentos negros que estão reivindicando a utilização de esclavizado como no site de Cimarrones Comunicación Interétnica no Perú http://www.cimarrones-peru.org/esclavizado.htm cujo objetivo é resgatar, revalorizar e difundir a cultura afroperuana.
promove a perpetuação da hegemonia ideológica branca no poder e impossibilita ao negro a libertação de sua condição de subcidadão:
Aproximadamente duas décadas mais tarde, depois da teoria da cordialidade de Gilberto Freyre, uma nova geração de cientistas sociais, ao estudar a discriminação racial no Brasil, acumulou evidências de que os brancos foram preconceituosos e os negros informalmente segregados. Tais cientistas, denominados revisionistas, perceberam que as possibilidades de mobilidade social foram limitadas ao negros, o que os levou a ocupar a base da pirâmide social brasileira e, sempre que competiam com brancos, eram discriminados. Os revisionistas mais importantes como Florestan Fernandes, Roger Bastide, Thales de Azevedo, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Guerreiro Ramos foram acusados, a princípio, de inventar um problema racial que não existia no Brasil mas, com o tempo, suas teorias foram ganhando adeptos e a teoria da cordialidade foi ultrapassada. O que era uma realidade na geração de Freyre, tornou-se um mito arruinado e desacreditado nas gerações seguintes. (SILVA, 2007, p. 166-167)
O ícone da democracia racial é a figura da mulata, na qual existe
uma forte imposição de seu papel sexual, fato registrado por Freyre (1933) ao discutir a substituição das mulheres brancas, em número escasso durante a colonização, por mulheres indígenas e negras, em maior número e consideradas “fáceis” por trocar relações sexuais por favores, presentes e status, negando o papel patriarcal e dominador do homem branco. Em Casa Grande e Senzala, a mulher negra é descrita como contadora de histórias e grande cozinheira, uma figura importante na infância; já na juventude, as recordações são da mulata: aquela que inicia os homens nos caminhos do amor3. O que se discute é que, diante da impossibilidade de que os homens brancos assumissem uma relação com uma mulher negra — carregada de categorias negativas por conta da escravidão — foi necessário “criar” uma figura que estivesse livre da discriminação racial, com características destacadamente sexuais, que ocupou um novo papel social com relação às negras exploradas. A mulata representa, portanto, a negação da mulher negra e sua “criação” surge do preconceito e do machismo da sociedade da época. Atualmente, os movimentos negros — em especial os organizados pelas mulheres negras — não aceitam o termo mulata por todas as implicações que carrega o vocábulo.
Estas discussões já circulam pela mídia: em 2015 a leitora Marcela Pedrosa escreveu a Sérgio Rodrigues, responsável pela coluna “Sobre Palavras”, da revista Veja (uma das publicações mais reacionárias do país, com orientação
3 Na literatura brasileira, podemos citar Jorge Amado como o grande representante de construção estereotipada da mulata sensual como caracterização da cultura do país.
4 Uma busca rápida no Google Brasil pela palavra mulata resultou em imagens na tela com mulheres mestiças de biquini, quase nuas e em posições sensuais (busca realizada em 09.mar.2017).
ideológica de extrema direita), perguntando ao autor se ele considerava uma ofensa racista a utilização da palavra mulata. Em sua resposta, o pesquisador explicou a origem etimológica da palavra (já comentada nesta reflexão) e, por fim, opinou sobre a possibilidade de ser ou não racista:
O tom depreciativo da associação original é indiscutível e facilmente explicável pelo racismo escancarado de uma época escravocrata. O que cabe discutir é se vale a pena condenar o vocábulo por causa disso.
Fazê-lo significa manter artificialmente vivo na língua de hoje um parentesco praticamente esquecido, além de ignorar os novos sentidos — alguns deles francamente positivos, como o da exaltação da miscigenação — que foram se colando com o passar do tempo ao termo mulato(a). (RODRIGUES, 2017, s. p.)
Rodrigues argumenta que a exaltação da mestiçagem foi “francamente positiva” e que a condenação do termo significaria manter um sentido praticamente esquecido. Devemos recordar que tal opinião é a de um homem branco que fala a partir de seu lugar, quer dizer, desde um lugar privilegiado que tem pouco ou nenhum contato com os movimentos negros. Para responder a esta pergunta,
o mínimo que o escritor poderia ter feito era contatar alguém — negro — que sentisse todos os dias os preconceitos por ser afrodescendente, e perguntar a uma mulher negra como ela se sente sabendo que, nas pirâmides econômica e social, é ela quem está na base.
Por outra lado, nossa pesquisa encontrou no site Geledés — Instituto da Mulher Negra que discute temáticas raciais e questões de gênero — um poema de cordel5 de autoria de Jarid Arraes sobre a utilização do termo mulata. Temos aqui a visão de uma mulher negra falando de seu lugar e reivindicando como ela gostaria de ser chamada:
Não me chame de mulata
Eu começo este cordel
Recorrendo ao dicionário
Pois o tal livro reflete
Um saber reacionário
Já que o significado
Do verbete ali mostrado
É antigo e ordinário.
(...)
5 Poesia de cordel é um gênero brasileiro desenvolvido no espaço geográfico do sertão e se caracteriza por sua popularidade em versos cantados ou impressos em folhetos baratos pendurados com prendedores postos à venda em cordões estendidos.
Essa palavra “mulata”
Ela não me representa
Não sou cria de jumento
Nem de burro sou rebenta
Eu sou filha duma gente
Corajosa e imponente
Com história opulenta.
(...)
Não me chame de mulata
Eu sou uma negra orgulhosa
Não me chame de morena
Eu sou preta vigorosa
Tenho gana para lutar
Para todos ensinar
Sempre bem esperançosa. (ARRAES, 2015)
Para Hall (2003a), as palavras são “multimoduladas” e sempre carregam ecos de outros significados que põem em movimento,
apesar de nossos melhores esforços para limitar o significado:
Tudo o que dizemos tem um ‘antes’ e um ‘depois’ — uma ‘margem’ na qual outras pessoas possam escrever. O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós. (p. 41)
O termo mulata se encaixa perfeitamente na definição de Hall, pois não utilizá-lo significa respeitar a vontade das mulheres negras que veem nele uma forma de racismo e depreciação constantes desde a época da escravidão. Em espanhol, ainda não encontramos um texto que discutisse a utilização do termo no contexto hispânico. Para que o tradutor saiba se deve traduzir mulata do espanhol ao português por mestiça ou negra, terá que compreender mais além do TP e interpretar qual é o sentido que o autor quis dar a ele.
Gayatri Spivak (1990) define a tradução como transmissão de textos literários e culturais através de uma forma — outra — de imaginarmos culturas de maneira mais compreensiva e mais responsável como estímulo para um (re)pensar de nós mesmos pelo olhar dos povos emergentes. Asseverando as afirmações de Hall, Bassnet e Santos, para a intelectual indiana, os desafios do tradutor não se resumem às dificuldades específicas relativas à transposição dos idiomas, e sim se ampliam na transmissão das marcas culturais peculiares de determinadas regiões da cultura de partida à cultura de chegada, com sua complexidade de enredos e personagens e, também, o forte papel social deste tipo de literatura.
Não ouvir a voz daqueles que sempre estiveram em situação de subalternidade e continuar utilizando os termos escravo e mulata é desrespeitar suas vozes e seguir mantendo a opressão e o silenciamento dos indivíduos negros.
Considerações finais
Retomando a pergunta inicial de Spivak (2010) ao questionar se, realmente, o subalterno está em uma posição em que pode falar e pode ser ouvido, destacamos que devemos, no mínimo, exercitar nossa capacidade de compreensão e interpretação dos sujeitos silenciados. O tradutor, em seu trabalho de tradução interlinguística e intercultural, é parte fundamental desse processo, definindo se interferirá mais ou menos no texto ao conhecer mais ou menos sobre o tema tratado. Arrojo (1996) chama esse processo de perda da inocência nos estudos da tradução, quando ocorre o reconhecimento por parte do tradutor de que não há uma ética dissociada dos interesses a que inevitavelmente serve. Ele sabe que “faz alguma coisa” e tem consciência desse fazer e de suas consequências. Se o tradutor não interfere, não toma partido e mantém o texto asséptico, configura-se também uma tomada de posição. Com relação aos tradutores, “Quanto mais conscientes estiverem dessa realidade e do papel que exercem sobre e a partir dela, menos hipócrita e menos ingênua será a intervenção linguística, política, cultural e social que inescapavelmente exercem” (ARROJO, 1996, p.64).
Traduzir se configura, portanto, em um ato de resistência
contra posições dominantes que exploram e interferem nas comunidades culturais. A tradução sob a ótica dos Estudos Culturais é um fator imprescindível para a disseminação dos saberes pelo mundo, através de expressões como a canção, a literatura, o cinema, o pensamento intelectual etc., em especial para as nações até então silenciadas e marginalizadas e que hoje conseguem fazer correr a voz devido às facilidades tecnológicas de divulgação de seus produtos em nível mundial. O tradutor é o porta-voz das comunidades silenciadas e, ao ter consciência disso, torna-se um mediador legitimado para a transmissão cultural entre nações.
Referências
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SANTOS, B.S. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Tradução de José Luis Exceni R., José Guadalupe Gandarilla Salgado, Carlos Morales de Setién e Carlos Lema. Montevideo: Ediciones Trilce, 2010.
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Liliam Ramos da Silva é Bacharel em Letras - português/espanhol pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e doutora em Letras pela UFRGS e especialista em ensino de língua e literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É professora das disciplinas de Tradução e Versão do Espanhol no curso de Letras/Tradução do Instituto de Letras da UFRGS; de 2014 a 2016, coordenou o projeto Tradução e Legendagem na UFRGS; atualmente, coordena a pesquisa Vozes negras no romance hispano-americano: a narrativa longa do século XIX. Contato: liliam.ramos@ufrgs.br