“Ciudad ocre”: a chuva, a névoa. É muito arriscado escrever no molhado, mas o que ...
É muito arriscado escrever no molhado, mas o que mais fazer se em Montevideo segue chovendo. Cometerei uma inconfidência virtual: faz uns dias, o cineasta argentino Raúl Perrone respondia virtualmente (postava, digamos com esse verbo horrível) a um increpador ou a um desses que sempre estão perguntando sobre o que não existe: o que falta o cinema argentino filmar? Falta filmar a chuva, dizia, contundente, esse criador inquieto e prolífico. Dizer algo assim no Rio da Prata é como sustentar que nos falta narrar ou filmar o gesto mais óbvio, o que nos rompe a alma. Quiçá supomos que Montevideo é uma cidade abúlica ou, de tão misteriosa, inenarrável. Digo “nós” por dizer algo, porque já sabemos que esta cidade ocre tem uma confiança raivosa em todos os seus gestos: os molestos, os místicos, os malditos; tudo com um eme maiúsculo, Montevideo, a chuvosa, a da névoa infinita.
Já disse o velho Onetti, com uma máxima que para alguns de nós se tornou bordão (“choverá sempre”), e também aqueles Traidores que no fundo não traíam nada porque só diziam sua verdade (“a chuva cai sobre Montevideo”); disseram e nomearam o óbvio, esse pesar melancólico, essa metáfora escrita com água, todo esse grande lugar-comum que, bem nomeado, dissipa-se em camadas de sentido.
Es muy riesgoso escribir sobre mojado, pero qué más hacer si en Montevideo sigue lloviendo. Cometeré una infidencia virtual: hace unos días, el cineasta argentino Raúl Perrone le contestaba virtualmente (posteaba, digamos con ese verbo horrible) a un increpador o a uno de esos que siempre están preguntando sobre lo que no existe: ¿qué le falta filmar al cine argentino? «Le falta filmar la lluvia», decía, contundente, ese creador inquieto y prolífico. Decir algo así en el Río de la Plata es como sostener que nos falta narrar o filmar el gesto más obvio, el que nos rompe el alma. Quizá suponemos que Montevideo es una ciudad abúlica o, de tan misteriosa, inenarrable. Digo «nosotros» por decir algo, porque ya sabemos que esta ciudad ocre tiene una confianza rabiosa en todos sus gestos: los molestos, los místicos, los malditos; todo con una eme mayúscula, Montevideo, la lluviosa, la de la niebla infinita.
Ya lo dijo el viejo Onetti, con un dictamen que a algunos se nos convirtió en muletilla («lloverá siempre»), y también aquellos Traidores que en el fondo no traicionaban nada, porque solo decían su verdad («la lluvia cae sobre Montevideo»); dijeron y nombraron lo obvio, ese pesar melancólico, esa metáfora escrita con agua, todo ese gran lugar común que, bien nombrado, se disipa en capas de sentidos.
Não sei, é difícil falar por todos, nomear-nos, dizer que isso que me acontece com a chuva respinga em outros. Por isso, às vezes, o eu excessivo e a afirmação contundente: Montevideo se encontra consigo mesma, com um de seus estados mais genuínos, quando chove. Essas coisas naturais (sua chuva, seu vento, sua luz) que desvelam uma correspondência improvável mas possível entre alguém e seu entorno. Talvez seja o contrário, é verdade: que este clima atormentado seja o que nos determina o caráter. Também é preciso pensar que um olhar poético é extremamente ingênuo ou cego quando se esquece que na chuva os desamparados e os famintos estão ainda mais desguarnecidos e que, caso ela se converta em inundações, os que vivem em barracos de lata (que são tantos e milhares) não podem negociar com poética alguma. Gente pobre e pobre gente: nós, os que transitamos na rua e a vivemos, os que negociamos a cada passo a posição do corpo diante desse manto de calçadas quebradas que cospem água e lama das suas entranhas em nossas bainhas.
Nós, os que andamos de ônibus e o esperamos por horas, os que garimpamos a cidade obrigados pelo trabalho. Nós, que não estamos preparados para estas chuvas e estes invernos porque nunca compramos as melhores botas, os casacos desejados, os guarda-chuvas resistentes.
No sé, es difícil hablar por todos, nombrarnos, decir que esto que me pasa con la lluvia chorrea en otros. Por eso, a veces, el yo excesivo y la afirmación rotunda: Montevideo se encuentra consigo misma, con uno de sus estadios más genuinos, cuando llueve. Esas cosas naturales (su lluvia, su viento, su luz) que develan una correspondencia improbable pero posible entre uno y su entorno. Quizá sea al revés, es cierto: que este clima emputecido sea el que nos determina el carácter. También hay que pensar que una mirada poética es extremadamente naif o ciega cuando se olvida que, en la lluvia, los desamparados y los hambrientos están aún más desguarnecidos y que, de convertirse en inundaciones, los que viven en ranchos de lata (que son tantos y miles) no pueden negociar con poética alguna. Gente pobre y pobre gente: nosotros, los que transitamos la calle y la vivimos, los que negociamos a cada paso la posición del cuerpo ante ese manto de veredas rotas que escupen agua y barro desde sus entrañas en nuestros dobladillos.
Nosotros, los que andamos en ómnibus y lo esperamos por horas, los que trillamos la ciudad obligados por el trabajo. Nosotros, que no estamos preparados para esas lluvias y estos inviernos porque nunca nos compramos las mejores botas, los abrigos deseados, los paraguas resistentes.
Minha teoria é muito simples, quase escrachada, de sossegado desejo: se as calçadas de Montevideo estivessem intactas, se motoristas de ônibus e carros fossem mais piedosos com os pedestres (se desacelerassem a maldade ou o prazer sádico de nos molhar), se tivéssemos as botas e os casacos necessários; se essas variáveis confluíssem, Montevideo seria o quinto ou sexto heterônimo de Fernando Pessoa. E seus habitantes, a própria encarnação de uma literatura desse tipo. Não é necessário ser pobre para ser existencial.
Também se pode amar a luz cálida, os dias sem vento nem chuva, as praias transbordantes, as noites de manga curta. Pode-se tudo, e tudo é porque tudo existe. Mas a chuva, essa chuva que escorre pelos olhos, que cai como bênção divina (que com seu som força um silencioso recolhimento), essa persistência de horas, e às vezes de dias, nos situa em um ponto exato de nós mesmos, talvez o ponto em que tanto ansiamos, e essa manifestação (esse algo inapreensível, incapturável, indizível) que outros nos invejam.
Se eu tivesse que aproximar um estrangeiro da compreensão silenciosa de um dos modos de ser montevideano, eu o sentaria num dia inteiro de chuva (a lenta e a furiosa e todos seus cinzas) diante da janela de um décimo andar, exposta à cidade. Também lhe mostraria os bares, claro, as confianças excessivas da noite, uma viagem inteira de ônibus, todos seus possíveis rios, as ruas arborizadas, meus amigos e outra vez a chuva.
Mi teoría es muy sencilla, casi de cajón, de sosegado deseo: si las veredas de Montevideo estuvieran sanas, si los conductores de ómnibus y autos fueran más piadosos con los peatones (si desaceleraran la maldad o el goce sádico de mojarnos), si tuviéramos las botas y los abrigos necesarios; si esas variables confluyeran, Montevideo sería el quinto o sexto heterónimo de Fernando Pessoa. Y sus habitantes, la encarnación misma de una literatura de ese tipo. No hay que ser pobre para ser existencial.
También se puede amar la luz cálida, los días sin viento ni lluvia, las playas rebosantes, las noches de manga corta. Se puede todo, y todo es porque todo existe. Pero la lluvia, esa lluvia que se cuela por los ojos, que cae como bendición divina (y que con su sonido obliga a un silencioso recogimiento), esa persistencia de horas, y a veces días, nos sitúa en un punto exacto de nosotros mismos, quizá el punto que de lejos añoramos, y esa manifestación (ese algo inaprehensible, incapturable, indecible) que otros nos envidian.
Si yo tuviera que acercar a un extranjero a la comprensión callada de uno de los modos de ser montevideanos, lo sentaría un día entero de lluvia (la lenta y la furiosa y todos sus grises) ante el ventanal de un décimo piso, expuesto a la ciudad. También le mostraría los bares, claro, las confianzas excesivas de la noche, un viaje entero en ómnibus, todos sus posibles ríos, las calles arboladas, mis amigos, y otra vez la lluvia.
E quando essa chuva vai acompanhada, precedida ou sucedida por essas noites de imensa névoa? Todos já as vimos, vivemos. Em certos momentos, em algumas zonas, não sei se o que evoco aconteceu, se é o remanescente de um sonho ou a combinação mais acabada entre essas duas ordens sem sentido. Essas noites ou madrugadas (que não são todas, claro, mas existem) em que toda a atmosfera é fumaça cinza de cigarro e nas que quase não podemos ver as mãos e muito menos os prédios, o fim da calçada, as lajotas quebradas; nada, dois metros mais para lá desta carne que nos transporta. Sei que a cidade existe, que tem mundo e civilização e construções, que outros cegos como nós caminham tateando ou guiados por uma percepção maiúscula ou pelo itinerário preso na memória do corpo. Sei de tudo isso, mas a cidade, tão logo, se transforma em um sonho ou em um estranho filme. E não é a névoa (ou a chuva) simbólica e politizada do filme A nuvem, de Fernando Pino Solanas (talvez, então, Perrone atacava pela exaltação uma maneira de filmar), nem a beleza extrema dessa cena insuperável de Um olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos (ou era em Paisagem na neblina, ou em A eternidade e um dia? Não importa, vejamos todos, já que, se não encontrarmos a referência exata, descobriremos uma melhor): o artista imerso na névoa da cidade na qual nasceu mas que, a princípio, não reconhece. O artista quase cego em sua cidade para poder ouvir os outros (músicos, poetas, loucos) e encontrar a sua própria voz. Não, essa névoa não é a de Buenos Aires ou a da velha Europa do Leste, nem sequer é (nem poderia ser) a névoa existencial (se é que existe) da Lisboa de Pessoa.
¿Y cuando esa lluvia va acompañada, precedida o sucedida por esas noches de inmensa niebla? Todos las hemos visto, vivido. En ciertos momentos, en algunas zonas, uno no sabe si lo que evoca aconteció, es el retazo de un sueño o la combinación más acabada entre esos dos órdenes sin sentido. Esas noches o madrugadas (que no son todas, claro, pero existen) en las que toda la atmósfera es humo gris de cigarrillo y en las que apenas podemos vernos las manos y mucho menos los edificios, el término de la vereda, las baldosas rotas; nada, dos metros más allá de esta carne que nos transporta. Uno sabe que la ciudad existe, que hay mundo y civilización y construcciones, que otros ciegos como uno caminan a tientas o guiados por una percepción mayúscula o por el recorrido prendido a la memoria del cuerpo. Sabe todo eso, pero la ciudad, de pronto, se transforma en un sueño o en una extraña película. Y no es la niebla (o la lluvia) simbólica y politizada de la película La nube, de Fernando Pino Solanas (quizá, entonces, Perrone atacaba por elevación una forma de filmar), ni la belleza extrema de esa escena insuperable de La mirada de Ulises, de Theo Angelopoulos (¿o era en Paisaje en la niebla, o en La eternidad y un día? No importa, mirémoslas todas, ya que si no encontramos la referencia exacta, descubriremos una mejor): el artista inmerso en la niebla de la ciudad en que nació, pero que, en principio, no reconoce. El artista casi ciego en su ciudad para poder escuchar a otros (músicos, poetas, locos) y encontrar su propia voz. No, esta niebla no es la de Buenos Aires o la de la vieja Europa del Este, ni siquiera es (ni podrá ser) la niebla existencial (si es que existe) de la Lisboa de Pessoa.
Esta é outra névoa, da praça dos bombeiros, por exemplo, situada exatamente no meio de Montevideo. Essa fumaça de cigarro dispersa sem odor, essa distância cega dos objetos, esse medo ou esse delírio. Um metro mais além de mim mesmo e sem que se detecte (talvez consiga perceber) pode ser que apareça um pivete, um lúmpen, um perdido, um transeunte qualquer, um desconsolado, um apaixonado ou até mesmo um fantasma. A cidade explicada, politizada e sodomizada por discursos transparentes, de repente, algumas noites, se desfaz no onírico. Talvez isso na verdade não exista e eu tenha me deixado levar por certa arte. Se assim for, me perdoem o sonho.
la diaria, 17 de julho de 2014.
Traduzida por Silvio Somer, Davi Silva Gonçalves, Leide Daiane de Almeida Oliveira, Myrian Vasques Oyarzabal, Larissa Ceres Rodrigues Lagos, Naylane Araújo Matos, Paulo Henrique Pappen, Ana Maria Martins Roeber, Sophia Caroline Samenezes de Jesus, Thiago André dos Santos Veríssimo e Verônica Rosarito Ramirez Parquet Rolón.
Esta es otra niebla, la de la plaza de los Bomberos, por ejemplo, ubicada perfectamente en el centro de Montevideo. Ese humo de tabaco expandido pero sin su olor, esa distancia ciega de los objetos, ese miedo o ese delirio. Un metro más allá de uno mismo y sin que uno lo detecte (quizá logre percibirlo) puede que aparezca un chorro, un lumpen, un perdido, un transeúnte cualquiera, un desconsolado, un amante o hasta un fantasma. La ciudad explicada, politizada y sodomizada por discursos transparentes, de pronto, algunas noches, se deshace en lo onírico. Quizá esto en verdad no exista y me haya dejado llevar por cierto arte. Si es así, perdonen el sueño.
la diaria, 17 de julio de 2014.