Foi em uma noite de estrelas poucas e temperatura amena que o consulente veio bater à porta de Beremiz, em Samarra. O home...
Foi em uma noite de estrelas poucas e temperatura amena que o consulente veio bater à porta de Beremiz, em Samarra.
O homem era conhecido e respeitado em toda região por seus vaticínios. Conquistara especial notoriedade na primavera do ano anterior, ao alertar a cidade de que, naquela estação de chuvas, o rio inflaria suas águas muito mais do que o comum, inundando todo o vale em cujo côncavo serpenteava. Não havia grande mercador ou chefe militar que, antes de nova empreitada, não viesse ter com Beremiz. Ocupava-se, também, de assuntos menores, dispensando atenção de igual quilate às angústias dos maridos desconfiados e aos receios dos viajantes quanto ao temperamento inconstante do deserto, desde que o soldo estivesse bem acertado. Prever tempestades de areia no caminho de uma caravana, desnudar a índole de um comerciante sem nem mesmo ter visto seu rosto, decifrar estratégias de guerra, enxergar sob os lençóis no escuro das alcovas – com água quente, grãos de café e louça branca, nada era impossível para Beremiz.
Após três batidas secas na aldrava, abriu-se a porta. O adivinho inspecionou a aparência do recém-chegado: túnica simples, cingida na cintura por uma faixa azul, turbante encimando a cabeça angulosa, um rosto eclipsado pelas sombras e pela dúvida. Fixou-se nos olhos: sim, ali estava um homem em grande dúvida. Mandou-o entrar.
Fue una noche de estrellas pocas y temperatura agradable que el consultante llegó a golpear la puerta de Beremiz, en Samarra.
El hombre era conocido y respetado en toda la región por sus vaticinios. Había ganado especial notoriedad la primavera del año anterior, al alertar a la ciudad de que, en aquella estación de lluvias, el río elevaría sus aguas mucho más de lo común, inundando todo el valle en cuyo cóncavo serpenteaba. No había gran mercader ni jefe militar que, antes de una nueva empresa, no visitara a Beremiz. Se ocupaba, también, de asuntos menores, brindando atención de igual quilate a las angustias de los maridos desconfiados y a los recelos de los viajantes en cuanto al temperamento inconstante del desierto, siempre que la paga fuera ajustada. Prever tormentas de arena en el camino de una caravana, desvelar la índole de un comerciante sin siquiera haber visto su rostro, descifrar estrategias de guerra, ver bajo las sábanas en la oscuridad de las alcobas: con agua caliente, granos de café y loza blanca, nada era imposible para Beremiz.
Luego de tres golpes secos a la aldaba, se abrió la puerta. El adivino inspeccionó la apariencia del recién llegado: túnica simple, ceñida en la cintura por una faja azul, turbante coronando la cabeza angulosa, un rostro eclipsado por las sombras y por la duda. Reparó en los ojos: sí, allí se encontraba un hombre en una gran duda. Lo hizo pasar.
A sala, recendendo a incenso, era coberta de tapeçarias e almofadas, e a luz baça de duas ou três lanternas coloridas não garantia mais do que penumbra ao aposento. A um sinal de Beremiz, sentaram-se no chão, em torno de uma mesa baixa de cedro. Havia uma questão séria a ser resolvida, coisa de vida ou morte; precisava tomar uma atitude, mas ainda não estava certo de como agir, por isso o visitava àquela hora, sem nem mesmo ter antes avisado. Desejava antever suas chances de sucesso. O vidente passou os dedos entre os fios da barba, estalou os lábios e anunciou: cem dinares.
De imediato, o consulente retirou do alforje um punhado de moedas e lançou-as sobre a mesa com um tinir metálico. Mesmo sob a claridade escassa das lanternas, as moedas brilharam. Beremiz ergueu as mãos e, batendo palmas, chamou: Ayesha!
Entrou na sala uma mulher esguia, envolta em seu véu, quase um espectro na leveza de seus passos e no fulgor liquefeito dos olhos oblíquos. Carregava uma bandeja e, sobre ela, uma xícara fumegante, branca, sem desenhos ou relevo, como tinha de ser. O vapor desenhava arabescos no ar.
La sala, que despedía un aroma a incienso, estaba cubierta de tapices y almohadones, y la luz opaca de dos o tres faroles coloridos no ofrecía más que penumbra al aposento. A una señal de Beremiz, se sentaron en el suelo, alrededor de una mesa baja de cedro. Había una cuestión seria que resolver, cosa de vida o muerte; necesitaba asumir una postura, pero aún no estaba seguro de cómo actuar, por eso lo estaba visitando a esas horas, sin haber siquiera avisado antes. Deseaba anticipar sus posibilidades de éxito. El vidente pasó los dedos entre los pelos de la barba, chasqueó los labios y anunció: cien dinares.
De inmediato, el consultante sacó de la alforja un puñado de monedas y las lanzó sobre la mesa con un tintineo metálico. Incluso bajo la escasa claridad de los faroles, las monedas brillaron. Beremiz levantó las manos y, batiendo palmas, llamó: ¡Ayesha!
Entró en la sala una mujer espigada, envuelta en su velo, casi un espectro en la levedad de sus pasos y el fulgor licuado de sus ojos oblicuos. Cargaba una bandeja y, sobre ella, una taza humeante, blanca, sin dibujos ni relieve, como debía ser. El vapor dibujaba arabescos en el aire.
Ela se inclinou para deixar a bandeja sobre a mesa. Foi quando o consulente sentiu roçar de leve em seu braço o tecido da saia. O frêmito que lhe picou os nervos reverberou mais forte quando a mulher se afastou, deixando-o envolto em uma nuvem de perfume conhecido. Era sândalo, ele pensou.
Deixemos o café repousar por algum tempo, disse Beremiz, e, enquanto isso, peço que prepares teu espírito para o contato com a arte divinatória, acalmando-o mas, simultâneo, permitindo que tome conta dele a pergunta que trazes a mim. O consulente fechou os olhos devagar e, com a voz grave do adivinho ainda ecoando em seus ouvidos, foi tomado pela certeza de ser impossível tal tarefa, tinha de escolher: ou apaziguava o coração, ou entregava-se ao pensamento sobre as razões de estar ali, naquela casa que, antes, conhecia somente pelo lado de fora, diante daquele homem de sobrancelhas argutas e cujas pupilas muito negras pareciam querer sorvê-lo, ou, ao menos, sorver a sua mente.
Ella se inclinó para dejar la bandeja sobre la mesa. Fue cuando el consultante sintió el suave roce de la tela de la falda en su brazo. El estremecimiento que le picó los nervios reverberó más fuerte cuando la mujer se alejó, dejándolo envuelto en una nube de perfume conocido. Era sándalo, pensó él.
Dejemos el café reposar por un rato, dijo Beremiz, y, mientras tanto, pido que prepares tu espíritu para el contacto con el arte adivinatorio, apaciguándolo pero, al mismo tiempo, permitiendo que se apodere de él la pregunta que traes a mí. El consultante cerró los ojos despacio y, con la voz grave del adivino aún resonando en sus oídos, se apoderó de él la certeza de que tal tarea era imposible, tenía que elegir: o apaciguaba el corazón, o se entregaba al pensamiento sobre las razones por las que estaba allí, en aquella casa que, antes, conocía solamente de afuera, delante de aquel hombre de cejas astutas y cuyas pupilas muy negras parecían querer absorberlo o, al menos, absorber su mente.
A um sinal de Beremiz, bebeu o café com vagar, concentrando-se na pergunta. O líquido parecia o mais amargo que já bebera. Depositou a xícara, contendo o resto de pó de café, sobre a mesa, e, de pronto, o vidente tomou para si a louça, colocou o pires sobre a xícara e virou-a em um movimento rápido. Depois de alguns instantes, pegou o recipiente e, com cenho franzido, apontou a borda, dizendo: muito espessa a borra aqui, estás bloqueando a energia; não pode ser assim, teremos de recomeçar.
Mais uma vez, as palmas, a entrada de Ayesha, o tremor.
Dessa vez, demorou mais para que Beremiz lhe apontasse a xícara. Durante os silenciosos minutos, o consulente pôs-se a imaginar os pequenos fragmentos de grão decantando, um a um, sem pressa alguma de urdir o destino. Quando por fim veio o gesto, não hesitou em articular, para si, outra vez, a pergunta e deixá-la crescer no peito, um tanto a cada gole. Mais amargo ainda. Então, o adivinho repetiu o procedimento; dessa vez, porém, sua face pareceu iluminar-se: sim, aqui temos algo, exclamou.
A una señal de Beremiz, bebió el café con lentitud, concentrándose en la pregunta. El líquido parecía el más amargo que había bebido. Depositó la taza, que contenía el resto de polvo de café, sobre la mesa, y, de pronto, el vidente tomó para sí la vajilla, colocó el platillo sobre la taza y la giró en un movimiento rápido. Después de algunos instantes, tomó el recipiente y, con el ceño fruncido, señaló el borde, diciendo: muy espesa la borra aquí, estás bloqueando la energía; así no se puede, tenemos que empezar nuevamente.
Una vez más, las palmas, la entrada de Ayesha, el estremecimiento.
Esta vez pasó más tiempo para que Beremiz le señalara la taza. Durante los silenciosos minutos, el consultante se puso a imaginar los pequeños fragmentos de grano decantando, uno a uno, sin prisa ninguna en urdir el destino. Cuando por fin vino el gesto, no dudó en articular, para sí, otra vez, la pregunta y dejarla crecer en el pecho, un poco a cada sorbo. Todavía más amargo. Entonces, el adivino repitió el procedimiento; esta vez, sin embargo, su rostro pareció iluminarse: sí, aquí tenemos algo, exclamó.
Girando a xícara no sentido horário, iniciou a leitura: vejo, bem nítida, a figura do dragão; significa que tens, diante de ti, uma boa oportunidade para mudar de vida. Beremiz parecia alheio ao mundo, quase febril no exercício de sua arte, enquanto o consulente, embora atento às suas palavras, estivesse com os sentidos também voltados ao ambiente ao redor: o cheiro de incenso agora mais fraco, misturado ao perfume do café, um fio de luar se infiltrando pela fresta da porta, um pisar manso, entreouvido no corredor adiante. Ayesha, por certo.
Um suspiro mais forte de Beremiz atraiu de novo, por completo, sua atenção: a espada, sim, sem dúvida, temos aqui uma espada, e isso é um pedido de ousadia – é preciso agir, pois quem não transcende, está fadado ao nada; além disso, o círculo cortado, um símbolo forte, representa o fim de um problema.
Os olhos do consulente se voltaram para o corredor. Um vulto o cruzara, rápido, mais de uma vez.
O cadeado, prosseguiu Beremiz, vais mudar de cidade. E emendou, em tom mais casual: vives em Samarra? Sim, respondeu o outro, vivo.
Girando la taza en sentido horario, inició la lectura: veo, bien nítida, la figura del dragón; significa que tienes, delante de ti, una buena oportunidad para cambiar de vida. Beremiz parecía ajeno al mundo, casi febril en el ejercicio de su arte, mientras el consultante, aunque atento a sus palabras, estaba con los sentidos también dirigidos al ambiente que lo rodeaba: el olor a incienso ahora más tenue, mezclado con el perfume del café, un hilo de luz de luna filtrándose por la rendija de la puerta, un andar manso, entreoído en el corredor de adelante. Ayesha, ciertamente.
Un suspiro más fuerte de Beremiz atrajo de nuevo, por completo, su atención: la espada, sí, sin dudas, tenemos aquí una espada, y eso es un pedido de osadía; es preciso actuar, pues quien no trasciende está predestinado a la nada; además de esto, el círculo cortado, un símbolo fuerte, representa el fin de un problema.
Los ojos del consultante se volvieron hacia el corredor. Un bulto lo había cruzado, rápidamente, más de una vez.
El candado, prosiguió Beremiz, vas a mudarte de ciudad. Y agregó, en tono más casual: ¿vives en Samarra? Sí, respondió el otro, vivo aquí.
E, de fato, vivia. Pela conversa miúda das ruas da cidade, ouvira falar de Beremiz, até que, certo dia, estando no mercado, alguém apontou: lá vai ele, o adivinho, com sua esposa. Conhecera assim, também, Ayesha. Um casal estranho, pensara na ocasião, não vejo neles a felicidade, e, para tanto, nem é preciso o poder da vidência.
Súbito, entre gargalhadas sem compasso, Beremiz falou: pois bem, meu jovem, enxergo bons augúrios logo adiante; tens a escada em tua sorte, portanto teus desejos de homem serão em breve satisfeitos.
O consulente sentiu como se algo lhe comprimisse as costelas por dentro, as orelhas afogueavam: as palavras que escutava eram aquelas por que mais ansiava e as que mais temia ouvir.
Beremiz, sardônico, quase completava a volta da xícara, finalizando a leitura dos desenhos feitos pelo acaso em suas laterais. Acaso?
O que vejo aqui?, surpreendeu-se ele, as pálpebras inquietas, piscando muito. A bailarina: uma mulher vai te ajudar – havia, agora, um laivo de vertigem na voz, um tremor quase inaudível que nem mesmo sussurro conseguia ser.
O consulente ouviu, de novo, os passos de Ayesha, agora mais fortes, decididos, antecipados pelo eflúvio de sândalo que invadiu a sala; então, altiva e calada, surgiu das sombras, por inteiro, parando abaixo de uma das lanternas. A luminosidade oscilante lhe conferia aura de súplica.
Y, de hecho, allí vivía. En los comentarios por las calles de la ciudad, había oído hablar de Beremiz, hasta que, cierto día, estando en el mercado, alguien señaló: allá va él, el adivino, con su esposa. Había conocido así, también, a Ayesha. Una pareja extraña, había pensado en esa ocasión, no veo felicidad en ellos, y, para eso, no es preciso el don de la videncia.
De repente, entre carcajadas sin compás, Beremiz habló: pues sí, joven, veo buenos augurios para el futuro próximo; tienes la escalera en tu suerte, por lo que tus deseos de hombre serán satisfechos en breve.
El consultante sintió como si algo le comprimiera las costillas por dentro, las orejas le ardían: las palabras que escuchaba eran las que más ansiaba y más temía oír.
Beremiz, sardónico, casi completaba la vuelta de la taza, finalizando la lectura de los dibujos hechos por el azar en sus laterales. ¿Azar?
¿Qué veo aquí?, se sorprendió, los párpados inquietos, pestañando mucho. La bailarina: una mujer te va a ayudar —había, ahora, una marca de vértigo en la voz, un temblor casi inaudible que no llegaba a ser ni un susurro—.
El consultante oyó, nuevamente, los pasos de Ayesha, ahora más fuertes, decididos, anticipados por el efluvio de sándalo que invadió la sala: entonces, altiva y callada, surgió de las sombras, por entero, deteniéndose debajo de uno de los faroles. La luminosidad oscilante le confería un aura de súplica.
De sobressalto, Beremiz tornou-se a ela e, olhos esbugalhados, bradou: já disse para não entrares aqui durante as consultas a menos que te chame.
Não teve tempo de dizer mais nada, nem mesmo de gritar. Ágil, o consulente se pusera de pé e, sacando uma adaga da faixa em sua cintura, abrira o pescoço do vidente de uma orelha a outra, em um só golpe. Beremiz cambaleou para o lado e ainda tentou pôr-se em pé. Inútil: o sangue jorrava pela ferida aos esguichos, sufocando-o, manchando a túnica, encharcando os tapetes. Uma palidez súbita apossou-se dele, e, quando vieram as convulsões, os globos oculares estavam quase por saltar das órbitas no último olhar de pânico congelado. Por fim, aquietou-se.
Ayesha e seu amado abraçaram-se. Estavam prontos para partir. Agora, era a liberdade, se ela, de fato, existisse – e, enquanto enlaçava a mulher, com as mãos ainda geladas, ele, em silêncio, implorava, não sabia bem a quem, para que tal quimera pudesse sim existir.
Antes de saírem, o homem tomou a xícara em suas mãos, fitou uma última vez os sinais nela deixados e atirou-a com força ao chão. O seu testemunho sem palavras fizera-se, por fim, em pedaços.
Restou, apenas, na sala, o corpo de Beremiz, exangue, e, esquecidas sobre a mesa, as moedas, que, sob a luz minguante das lanternas coloridas, emitiam reflexos amarelados, aterradores.
De sobresalto, Beremiz se volvió hacia ella y, con ojos abiertos de par en par, bramó: ya te he dicho que no entres aquí durante las consultas a menos que te llame.
No tuvo tiempo de decir más nada, ni siquiera de gritar. Ágil, el consultante se había puesto de pie y, sacando una daga de la faja de su cintura, había abierto el pescuezo del vidente de oreja a oreja, de un solo golpe. Beremiz se tambaleó para un lado y hasta intentó ponerse de pie. Inútil: la sangre salía a borbotones por la herida, sofocándolo, manchando la túnica, encharcando las alfombras. Una palidez súbita se apoderó de él y, cuando vinieron las convulsiones, los globos oculares estaban casi por saltar de sus órbitas en la última mirada de pánico congelada. Por fin, se quedó quieto.
Ayesha y su amado se abrazaron. Estaban prontos para partir. Ahora, era la libertad, si es que de hecho existía; y mientras enlazaba a la mujer, con las manos aún heladas, él, en silencio, imploraba, no sabía bien a quién, para que dicha quimera pudiese de hecho existir.
Antes de salir, el hombre tomó la taza en sus manos, miró fijamente una última vez las señales en ella dejadas y la tiró con fuerza al piso. Su testimonio sin palabras, por fin, se había hecho pedazos.
Quedó en la sala apenas el cuerpo de Beremiz, exangüe, y —olvidadas sobre la mesa— las monedas que, bajo la luz menguante de los faroles coloridos, emitían reflejos pálidos, aterradores.
Traducido por Carla Rapetti